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Exposição FADO TROPICAL – São Paulo, BR

Sobre o MUSEU NACIONAL DOS COCHES

Exposição FADO TROPICAL
Sobre o Museu Nacional dos Coches

ESPAÇO CREMME
Rua Mateus Grou 629
São Paulo, Brasil

Realização: Sopro Coletivo e Cremme

O recém-inaugurado Museu dos Coches, em Lisboa, causa estranheza à primeira vista. A simplicidade dos volumes contrasta com a complexidade do entorno, sem dúvida, o mais importante espaço da cultura lusófona. Ali estão o Mosteiro dos Jerónimos e a torre de Belém, à beira da magnificência do Tejo, de onde os portugueses saíram para descobrir o mundo; e os incontornáveis pasteis de nata, para onde aflui a gula dos turistas de todo o mundo.

Por trás do imponente paralelepípedo branco, a flutuar polemicamente sobre os alfacinhas, está a elegância modesta de Paulo Mendes da Rocha. Em meados de 2008, num Portugal ainda inocente quanto às agruras da anorexia fiscal, dizem as más línguas que o então ministro da Economia convidou certa dupla de arquitetos suíços para construir o museu, o que foi prontamente declinado por conta do prazo pouco germânico que havia sido proposto. Em seguida, após breve delírio anglo-iraquiano, que teria levado Camões e Vasco da Gama a preencherem os papeis para um exílio no São João Batista, os monumentais Álvaro Siza e Eduardo Souto de Moura teriam convencido o ministro da escolha natural do então recém-pritzkerizado paulistano. Fernando Pessoa, que tinha ficado desassossegado, pôde cair no sono depois que Dom Sebastião prometeu que o sertão não ia mais virar mar. Nada teria sido mais justo que chamar nosso gênio tupiniquim para fazer uma pororoca desaguar no Tejo.

Em seu igualmente modesto escritório no centro de São Paulo, em meio à força da grana que ergue e destrói coisas belas, Paulo Mendes da Rocha nos recebe com desconcertante sagacidade, do alto de seus 86 anos. Entre cigarros empunhados com a mesma precisão das palavras pronunciadas, nos explica que aceitou o convite por poder contar com o apoio do grande engenheiro, Rui Furtado, e do promissor arquiteto, Ricardo Bak Gordon, além da equipe parceira de décadas do escritório MMBB.

Visitou Lisboa e buscou trabalhar com o terreno dentro daquela geografia construída pelo homem: o aterro roubado do rio e dissociado deste pela linha dos trens que partem do Cais do Sodré; a pitoresca rua da Junqueira com seus bondes e casas d’antanho; o delicado rosa do palácio de Belém e a barrocamente gótica arquitetura manuelina do Mosteiro e da Torre; a praça do Vice-Rei das Índias e a suave inclinação da ladeira da Ajuda. O lençol freático teria tornado inviável qualquer tentativa de subsolo e a escala da maior coleção de carruagens do mundo pedia espaços proporcionais. Muito naturalmente, foi criado um grande volume, contendo duas salas de 20 metros de largura, 135 metros de comprimento e 8.5 metros de altura. Ali, na sobriedade do concreto e do branco, protegidos pela eternidade de um edifício, ficariam esses grandes engenhos da mecânica, recobertos de ouro, Netunos e outros adornos sobre quatro rodas.

O resto do programa, qual seja, os ateliers de restauro, espaços de administração, um auditório e um incontornável “restaurant, para mostrar o que Portugal tem de melhor”, nas palavras do próprio Paulo, foi deslocado ou para as vistas do público na porção envidraçada do térreo ou para o anexo na esquina da rua da Junqueira. Se a arquitetura é a arte de trabalhar os vazios, o Museu dos Coches já se afirma como obra prima: entre o volume principal e o anexo, criou-se uma piazzeta, a estimular os fundos dos edifícios históricos a criarem urbanidade dentro do miolo fo lote antes isolado, conectado ao entorno por uma rica coleção de espaços públicos sob os vãos e por entre as ruelas dos recuos entre os pavilhões do museu e o contexto. Sob o anexo, o volume do auditório é pintado de rosa, “como quem pega uma casinha daquela e põe lá dentro”. Cosa mentale.

Ouvir Paulo Mendes da Rocha descrever, despretenciosamente, a « transformação da mesma coisa, uma transformação do lugar, antes de mais nada » é desconcertante. Em poucos minutos, a solução arquitetônica do museu aparece como evidência geográfica, completada pela proposta de um estacionamento do outro lado dos trilhos, na beira do Tejo, a abrigar os coches de hoje, “latas de 700 quilos para transportar um cretino de 70, pintadas em cores brilhantes”. Para cruzar o Rubicão, uma passarela desdobra-se desde o anexo, margeia o volume principal e chega até o estacionamento, apesar de, infelizmente, as rampas ainda estarem escondida por trás de tapumes e de o volume circular do estacionamento permanecer na prancheta.

Deixemos o existente e apenas ouçamos o elogio da engenhosidade da construção do porvir, “que não é minha, já existe em Portugal, chamam-no silo de estacionamento”. Surgem rampas suaves, inclinadas como numa rua, enroscando-se até abrigar algumas centenas de carros. Painéis perfurados, desses pré-fabricados, protegendo da chuva e do vento, revelam os faróis à noite, brincando com o escuro e com o infinito do círculo, “já por si, um espetáculo extraordinário”. Aquilo há de terminar e “por que não?”, num terraço esplêndido, horizontal, com vistas para o rio, o mais belo terraço de Lisboa nas noites de réveillon. E quando os carros virarem peças de museu, tudo aquilo deve virar lojas, um hotel, restaurantes… Voltemos à incompletude do que há.

Enquanto o anexo fascina por sua clarabóia à la Artigas, tramando sombras no térreo, o volume principal intriga pelo hermetismo. As gigantescas vigas da estrutura de aço são reveladas por delicados trapézios que viram portas, vitrines e abrigam passarelas. Os dois grandes salões são separados pelos espaços das duas vigas intermediárias que, ligadas às oficinas de restauro do térreo, servem como áreas técnicas para o museu. A circulação dos visitantes faz-se em fluxo contínuo, por dois elevadores que são verdadeiras plataformas de transporte público, com capacidade para 75 passageiros cada. Nos salões, apenas dois rasgos horizontais opostos enquadram o exterior, “como naqueles panoramas marinhos que tantos pintaram no Rio de Janeiro”. De um lado, vê-se a ponte 25 de abril e Lisboa a subir os montes; do outro, cabeças levitam sobre a passarela, na mesma altura dos visitantes dentro do museu, com o Tejo e Belém como pano de fundo.

A museologia de Nuno Sampaio toma em consideração as possibilidades presentes e futuras das projeções. Os coches seculares serão explicados por meio de imagens e, quem sabe um dia, hologramas, capazes de contextualizá-los enquanto objetos da história e da mecânica. Entretanto, é forçoso constatar que, hoje, o museu abriu apenas com parte do seu potencial. A Bamboo o visitou há poucas semanas e os tapumes ainda presentes, a museologia desrespeitada, além de duvidosos cavalos de cera, não fazem todavia jus ao museu mais frequentado de Portugal. Pronto há mais de dois anos, o edifício tornou-se símbolo da polarização política e virou objeto de politicagem durante a crise econômica. O governo o manteve inexplicavelmente fechado como retrato de uma austeridade desinteligente, enquanto poderia já ter gerado renda, e o abriu sem ter construído o estacionamento ou efetivamente respeitado o projeto museológico.

Polêmicas à parte, a atemporalidade da obra de Paulo Mendes da Rocha seguirá brilhando, malgrado o tratamento indevido que possa ser dado ao edifício em si. Depois de horas de uma conversa esclarecedora com um arquiteto que, assim como Niemeyer, nas palavras de Vinicius de Morais, é um dos “mais antiautopromocionais que existem”, a estranheza desfez-se. Resta apenas uma profunda admiração e o desejo que seja completado o genial poema de pedra de nosso imenso conterrâneo.

Raphael Franca

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