FG+SG fotografia de arquitectura | architectural photography

Fernando Guerra foi pioneiro na forma de fotografar e comunicar a arquitectura. Há 25 anos abriu o estúdio FG+SG em colaboração com seu irmão e juntos são responsáveis por grande parte da difusão da arquitectura contemporânea portuguesa, nos últimos vinte e cinco anos.

Fernando Guerra é fotógrafo de arquitectura. A sua formação, porém, é de arquitecto. O seu olhar divide-se entre dois modos distintos de construir o mundo. Por esta circunstância, ele encontra-se numa posição privilegiada para protagonizar a metamorfose do campo fotográfico que fará com que esta prática de criação de imagens se venha a identificar, em parte, com o próprio campo arquitectónico.

Para compreender o espaço, os arquitectos, eventualmente com uma intencionalidade mais consciente que os simples utilizadores, circulam pelos edifícios. Captam a espacialidade da arquitectura deambulando, perscrutando, fazendo associações de ideias, de formas, de dimensões. É através desse movimento que descobrem as infinitas variáveis do espaço arquitectónico, as singularidades que fazem distinguir um espaço significante da miríade de construções insignificantes que invadem o nosso campo visual. E fazem-no cruzando aquilo que vêem com as memórias de outros edifícios que transportam consigo, muitas vezes adquiridas através da observação mediada pela fotografia. A nossa cultura arquitectónica, na impossibilidade de visitar todos os edifícios do mundo, é maioritariamente construída através do olhar de outros.

É neste sentido que Fernando Guerra lança um olhar generoso sobre a arquitectura que regista. Entre os edifícios que fotografa, não se percebe, exactamente, um juízo de valor sobre os conteúdos da arquitectura; antes um controle, ao nível das emoções, que busca homogeneizar todos os registos. Portanto, cultiva-se a ausência de qualquer moralismo-crítico que possa interferir com o resultado final da imagem e que busca posicionar-se (arquitectonicamente) num plano neutral, valendo-se a si mesmo. É simultaneamente um mundo onde não há arquitecturas melhores, nem piores. O fotógrafo, ao contrário do fotógrafo-artista, é convocado e responde através do seu conhecimento de expert. Se manipula a imagem, isto é, se lhe retira um excesso qualquer de “realismo”, fá-lo consciente que trabalha num domínio de imparcialidade.

Os seus trabalhos são editados regularmente em diversas publicações tanto a nível nacional como internacional, em revistas como Casabella, Wallpaper*, Dwell, Icon, Domus, A+U, entre muitas outras.
A FG+SG colabora com diversos arquitectos portugueses como Álvaro Siza, Carlos Castanheira, Manuel Mateus, Manuel Graça Dias, Gonçalo Byrne, ARX Portugal, João luís Carrilho da Graça, Promontório Arquitectos; assim como, arquitectos internacionais como Márcio Kogan, Isay Weifeld, Arthur Casas, Zaha Hadid, Pei Cobb Freed & Partners entre outros.

Em 2012, foi nomeado Canon Explorer, assumindo o papel de embaixador da Canon Europa ao nível da fotografia de arquitetura.

De 2015 a 2016, Fernando Guerra ganhou 3 prêmios internacionais de fotografia de Arquitectura:

  • Arcaid Images – “Fotógrafo de Arquitectura do ano de 2015”
  • Plataforma Arquitectura – Prêmio de Fotografia “Obra del Ano 2015 – Projeto do ano de 2015”
  • Architizer – Vencedor do prêmio na categoria Arquitetura + Fotografia em 2016.

 

Realizou exposições em países como Portugal, Espanha, Itália, França, Reino Unido, Chile, Brasil, Grécia, Peru, Coreia do Sul, Rússia, Estados Unidos da América e China.

O site ultimasreportagens.com tornou-se no ponto de partida para consultar arquitectura contemporânea portuguesa com mais de seiscentas reportagens online, bem como artigos especiais e publicações

 


 

Fernando Guerra
[email protected]

Nasceu em 1970, em Lisboa.

Licenciou-se em arquitectura em 1993 pela Universidade Lusíada de Lisboa, trabalhou durante cinco anos em Macau como arquitecto (1994-1999).

Leccionou a cadeira de Projecto II no curso de Arquitectura da Arca-Euac (Escola Universitária das Artes de Coimbra), entre 1999 a 2005.

O seu trabalho encontra-se representado em diversas coleções particulares e públicas.

O Museu MoMa em Nova Iorque adquiriu em 2015 seis trabalhos de Fernando Guerra para a sua coleção permanente.

 

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Textos | About

“A arquitectura da fotografia”
Manuel Graça Dias

“Reconfigurar o mundo”
Luís Urbano

“Mundo perfeito”
Ana Vaz Milheiro

“Foto-síntese”
Nuno Grande

 

 

O Fazedor
Pedro Gadanho

Já devem ter reparado que, dentro do universo da fotografia contemporânea, a fotografia de arquitectura se transformou, nos últimos anos, num campo à parte. Ganhou autonomia. Tem a sua história e as suas referências. Tem os seus autores e os seus subgéneros. Está prestes a lograr a perfeição.
Tal como a recurso à fotografia por parte da arte contemporânea detém um território especial –que por vezes se cruza com o do campo que aqui descrevo– também o olhar profissional sobre os mundos construídos da arquitectura ganhou as suas lógicas próprias.
Como se comprovava num recente seminário internacional sobre arquitectura e imagem, também este campo detém agora os seus historiadores, as suas estrelas e os seus debates internos.
E os media da fotografia de arquitectura começam, naturalmente, a imiscuir-se com os media da produção arquitectónica que essa fotografia retrata.
Enquanto os blogues internacionais começam a dedicar uma atenção particular aos autores deste campo – a entrevistá-los, a descobrir os seus temas, a analisar a especificidade da sua produção individual– um dia destes, que já não está longe, perguntar-nos-emos se os media da arquitectura não se tornaram, entretanto, nos media desta fotografia específica.
Poderá parecer perverso que tal aconteça, mas a verdade é que, num mundo construído sobre a lógica da imagem, a fotografia ajuda a construir a arquitectura – e, portanto, é justo que um dia lhe tome parcialmente o lugar.
As ficções arquitectónicas da fotografia contemporânea, a que já me referi noutros contextos, não são senão uma evidência sub-reptícia desta metamorfose.

Fernando Guerra é fotógrafo de arquitectura. A sua formação, porém, é de arquitecto. O seu olhar divide-se entre dois modos distintos de construir o mundo. Por esta circunstância, ele encontra-se numa posição privilegiada para protagonizar a metamorfose do campo fotográfico que fará com que esta prática de criação de imagens se venha a identificar, em parte, com o próprio campo arquitectónico.
Posso oferecer uma prova pessoal: sendo irónico que uma casa minúscula como a Casa Baltasar tenha tido uma projecção mediática tão proeminente, a imagem que teve o dom de projectar esta arquitectura menor para essa enorme visibilidade foi descoberta por Fernando Guerra.
O potencial estava lá, é certo, mas foi o olhar de Guerra que, entre outras imagens já antevistas, fixou em definitivo a espacialidade peculiar de um determinado ponto de vista.
Como acontece com outros, não se dá aqui o caso de que Fernando Guerra ambiciona transferir o seu desejo de fazer arquitectura para a elaboração de imagens que substituam a própria arquitectura. Mas a leitura e a interpretação também constroem mundos. E como na história dos cartógrafos de Jorge Luís Borges, pode acontecer que estes mundos se justaponham à realidade de forma tão justa que se vêm a confundir com ela.

Quando a FG+SG surgiu na arena da fotografia de arquitectura, oferecia aos arquitectos um modelo de negócio irresistível. Guerra não só fotografava, e bem, as obras de arquitectura, mas a sua presença estratégica na rede virtual funcionava, ainda, como uma importante plataforma de visibilidade para as imagens produzidas.
Construía-se, deste modo, não apenas um “mundo perfeito,” mas também as ferramentas perfeitas para a indispensável e desejável difusão das obras retratadas.
Com esta vantagem competitiva e o brio de um impecável profissionalismo, a FG+SG começou, primeiro inadvertidamente, depois conscientemente, a construir o mais vasto arquivo da arquitectura portuguesa contemporânea hoje disponível.
A sua obra fotográfica tornou-se expressiva de um potencial ainda inaudito na curta história da autonomia deste novo campo: a cartografia do seu arquivo tornou-se indistinguível da realidade da arquitectura portuguesa a que, naturalmente, todos os arquitectos portugueses aspiram pertencer.
Independentemente da sua própria vontade, Fernando Guerra tornou-se o fazedor do império.

Pedro Gadanho divide a sua actividade entre arquitectura, curadoria, crítica e docência universitária. É MA in Art & Architecture e realizou doutoramento na F.A.U.P., onde lecciona. É editor do blog ShrapnelContemporary e do bookazine Beyond, Short-Stories on the Post-Contemporary, em Amsterdão, contribuindo regularmente para outras publicações a nível internacional. Foi comissário de ‘Metaflux,’ representação portuguesa na Bienal de Veneza de Arquitectura de 2004, e de mostras como ‘Space Invaders,’ ‘Post. Rotterdam,’ ‘Pancho Guedes,Um modernista alternativo,’ e ‘Habitar Portugal 2006-2008.’ Integrou a direcção da ExperimentaDesign, entre 2000 e 2003. Os seus projectos de arquitectura incluem a Casa Laranja, em Carreço, o Art Center da Fundação Ellipse, e a Casa Baltasar, no Porto. shrapnelcontemporary

 

 

A ARQUITECTURA DA FOTOGRAFIA
Manuel Graça Dias

Teve que passar bastante tempo, depois de 1839 e dos primeiros daguerreotipos que reproduziam “quadros” postos à frente do fotógrafo (para alegria e espanto sobretudo daqueles que sempre tinham, secreta e miticamente, ambicionado poder um dia ficar fixados numa tela através do “génio” de um artista pintor), para que a fotografia ganhasse um estatuto próprio, como se sabe.

Se para a pintura foi fundamental essa data — para se poder começar a desvincular da obrigação de “reproduzir” o real, para se poder dedicar ao que sempre verdadeiramente lhe interessara (o recorte, os contrastes, a luz, a sombra, o despertar da cor ou o seu súbito desvanecimento, tomando como base troços visualizados do mundo real, mas também outras imagens: inventadas, sonhadas, derivadas ou irreconhecíveis) –, para a própria fotografia terá parecido muito pouco provável a saída imediata desse inicial universo de figuração e de composição em espelho, a devolver, simbólico, a quem se desejava ver retratado.

No entanto, ganha a “objectividade” da devolução da imagem, sobrava ainda o subjectivo “olhar” aberto através do quadrado onde batia a luz, nas costas do fole das câmaras fotográficas. O sublime da arte foi descoberto quando se compreendeu o encanto de re-olhar o que já conhecíamos, deixando “em fundo” garantido o “documento” e trazendo “para a frente”, a espécie de renovação rectangular que, simultaneamente, o isolava do mundo e do contexto.

[As “câmaras mentem tanto”, diz-nos Bill Watterson através da boca de Calvin (“Calvin & Hobbes”, Público, 15 de Outubro de 2002)].

A fotografia “documental” passou a existir (daí o seu encanto) neste estreito esmagamento temporal, entre a felicidade do acontecimento, do ambiente ou da acção a reproduzir e o vislumbrado novo modo de os “enquadrar” (com a assistência da “técnica”, que permitirá a melhor abertura face à luz, o melhor “foco”, a melhor profundidade de campo).

A “Fotografia de Arquitectura” inserindo-se nesta categoria, obrigará, ainda, suplementarmente, a um enorme rigor em qualquer dos níveis considerados.

Exigir-se-lhe-á, primeiro, que nos devolva a compreensão do espaço retratado. Tarefa impossível, porquanto o espaço e as suas múltiplas dimensões não se deixam “prender” na bidimensionalidade da convergência perspéctica da reprodução fotográfica; mas uma “aproximação”, uma “aproximação” que nos acorde as memórias de outras experiências e que nos sugestione o tipo de espaço, as preocupações do autor, o que sentiu o fotógrafo que o habitou antes de no-lo tentar devolver e à pesada leveza do que o envolve.

Quanto tempo (dias) aguardará pelo sol? Aquele sol — daquele dia — as sombras que provoca? Não para “falsear” na revelação a sua estadia, mas porque sentiu caracterizador (e então uma boa hipótese de sugestão), aquela particular sombra de um dia de Verão.

Depois o olhar, o tal quadrado ou quadro que é o interior do enquadramento: como vai o fotógrafo de arquitectura “enquadrar”? O que omitirá? De que cuidados e éticas se rodeará, com a caixa aberta perscrutando o construído? Procurando o real? Revendo o real?

Só depois a “técnica”, mediando ambas, pedida por ambas. E representar a Arquitectura irá exigir a ilusão de eliminar a distorção perspéctica, encontrando o non troppo herdado da composição renascentista, regressando à alvenaria plasmada em plano que o nosso olhar, educado por séculos de imagens, aprendeu a admitir. Entram as lentes ajustadas e as baterias de máquinas aqui; por vezes, ainda um pouco de photoshop, para anular um prematuro grafitti, uma mancha quase mínima ou uma sombra que só a cuidadosa observação posterior da imagem revelou.

Mostrar a arquitectura. Todos os arquitectos se julgam fotógrafos. Vítor Figueiredo especulava sobre o tema.

O que levará os arquitectos a sentirem-se tão à vontade por aí, sabendo nós que só de alguns — poucos –, nos interessarão as fotografias?

Os arquitectos emocionam-se com a arquitectura: com a do passado, com a moderna, com a qualidade e com a originalidade do espaço, com o acerto geométrico do espaço que o espaço parecerá conter. E querem guardar essas emoções. Querem (imaginam querer), mais tarde, poder olhar o pedaço de real, recompondo mentalmente esse real. Querem copiar, transportar aquela emoção, refundi-la, eventualmente, noutros contextos, também reais.

Muitos tropeçarão, por isso, na armadilha da “objectividade”. Outros divagarão sobre o olhar, propondo-nos outros olhares. A poucos sobrará a necessária paciência para, emocionados, aguardarem o acordar da manhã, o primeiro raio de sol ou então o último, a sombra longa estendida, o brilho no cerâmico, a passagem dos bandos de pássaros à hora da algazarra.

Na sua actividade solitária, privilegiarão os corredores vazios para melhor poderem, e mais à vontade, experimentar, testar, inventar o olhar.

Só quando virem passar ao longe fugaz um aluno, numa escola em férias, compreenderão então, quanto aquele vulto, subitamente, é de tal modo definitivo para a compreensão da dimensão do corredor, para o corte da luz que “rebenta” o fundo, para a inscrição da escala, face à altura do todo.

Mas a lenta artilharia técnica não se compadece com a frescura da reportagem que o arquitecto desejaria atenta, acordada e “plástica” face aos acontecimentos.

Ali, onde os acontecimentos seriam o espaço parado existente, mexido pela solene passagem do sol, no enfiado preciso com a porta-corredor-tubo, é o arquitecto-fotógrafo que, depois de tudo ajustar, emprestará ainda o seu corpo à imagem do espaço que anteviu, na ausência desse aluno que só verá do espaço a imagem mais tarde.

 

RECONFIGURAR O MUNDO
Luís Urbano

Não acredito na objectividade da fotografia. Por mais que muitos tentem apagar as contingências subjectivas da vida quotidiana que contaminam os espaços puros que os arquitectos desenham, uma imagem de um qualquer objecto arquitectónico, ou simplesmente de um objecto, é sempre a imposição de um ponto de vista. De quem fotografa, de quem escolhe o enquadramento, de quem escolhe a luz, o tempo de exposição, o tipo de lente, a máquina. É um olhar que implica uma escolha, ou infinitas escolhas, e é por definição (definitivamente?) subjectivo.

Não acredito no mito do fotógrafo de arquitectura contemplador que acha possível escolher a priori um único olhar sintético que conjugue tudo o que uma obra de arquitectura encerra. A arquitectura é por definição múltipla, dependente de inúmeras variáveis, nunca totalmente apreensível, infinitamente interpretável. A percepção da arquitectura depende da conjugação de múltiplos pontos de vista, da reconstituição mental de inúmeros espaços.

Aldo Rossi, na sua “Autobiografia Científica” reconhece que “a observação das coisas permaneceu, provavelmente, como a minha mais importante educação formal e isto porque a observação se transforma mais tarde em memória”. Ao olhar para trás, Rossi cruza a sua própria cultura, a memória das coisas, “que consigo ver dispostas ordenadamente, como num herbário, num catálogo ou num dicionário”, com a imaginação. Este processo não é linear, havendo um cruzamento entre ambas que produz diferentes significados, isto é, o resultado dessa hibridação é mais do que a simples soma das partes. “Este catálogo, situado algures entre a imaginação e a memória, não é neutral. Reaparece quase sempre nalguns objectos constituindo a sua deformação e, em certa medida, a sua evolução”. O que observámos no passado reaparece na presença do novo, filtrado pela força da memória das coisas, permitindo um novo olhar, com sentido crítico. É a memória que forma o olhar, permitindo a deformação dos objectos, isto é, quando olhamos para um qualquer objecto, arquitectónico ou não, ele transfigura-se quando cruzado com a recordação daquilo que já vivemos.

O olhar de Fernando Guerra é um olhar de arquitecto. Para compreender o espaço, os arquitectos, eventualmente com uma intencionalidade mais consciente que os simples utilizadores, circulam pelos edifícios. Captam a espacialidade da arquitectura deambulando, perscrutando, fazendo associações de ideias, de formas, de dimensões. É através desse movimento que descobrem as infinitas variáveis do espaço arquitectónico, as singularidades que fazem distinguir um espaço significante da miríade de construções insignificantes que invadem o nosso campo visual. E fazem-no cruzando aquilo que vêem com as memórias de outros edifícios que transportam consigo, muitas vezes adquiridas através da observação mediada pela fotografia. A nossa cultura arquitectónica, na impossibilidade de visitar todos os edifícios do mundo, é maioritariamente construída através do olhar de outros.

Através da generosidade de nos oferecer múltiplos pontos de vista de um edifício, as reportagens fotográficas de Fernando Guerra aproximam-se da vivência real do espaço, ao permitir que reconstituamos um lugar através da soma de todas imagens. Nesse sentido aproxima-se também da linguagem cinematográfica, não só pela implícita ideia de movimento que as suas imagens transmitem mas também pelo sentido narrativo que lhes imprime o fotógrafo. E daí a necessidade, quase obsessiva, de incluir personagens nos seus enquadramentos. Por vezes personagens anónimas, outras vezes os arquitectos, muitas vezes o próprio fotógrafo. Certamente não por qualquer vontade de auto representação, mas pela necessidade de dar sentido e escala a um determinado espaço, que na ausência de uma figura humana se tornaria incompreensivelmente abstracto. Há uma vontade de que cada imagem encerre um fragmento de vida, uma história pessoal, mas onde os personagens são suficientemente indefinidos, vultos quase, para deixar o observador imaginar o quadro que entender. Como em Julius Schulman, as imagens de Fernando Guerra procuram, para além de representar a arquitectura, captar um sentido de lugar, uma atmosfera que define a época contemporânea. Mas o que em Schulman era intencionalmente encenado, com um sentido narrativo por vezes demasiado literal, em Guerra é intencionalmente difuso, permitindo imaginar todas as histórias que aí terão lugar.

A palavra perfeição encerra uma certa radicalidade, já que implica um estado limite, sem evolução possível. Quando se atinge a perfeição nada mais há a fazer senão contemplar o belo. Mas ao mesmo tempo a busca da perfeição pode ser um acto generoso. Quando se tem por objectivo encontrar as melhores imagens para representar a essência e o conceito de um edifício, está-se a responder aos desejos daqueles que o projectaram. Tal como os arquitectos reconstroem um mundo particular em cada projecto, procurando dar um sentido de unicidade a partir das variáveis com que se confrontam – do cliente ao lugar, da geografia ao orçamento, das contingências materiais às limitações estruturais – as fotografias de Fernando Guerra devolvem à arquitectura essa procura da perfeição possível, “intensificando a realidade retratada”, reconfigurando o mundo que a rodeia.

Mundo Perfeito, livro e exposição, mostra também a vontade de conjugar arquitecturas que partilham uma mesma identidade, a arquitectura feita em Portugal, hoje. Não fossem as conotações demasiado politizadas, mundo aqui poderia querer dizer mundo português. Mas um mundo português agora aberto aos outros mundos, plural, democrático, cosmopolita. A circunstância de serem obras feitas em território português ou por portugueses noutros territórios, e apesar da volatilidade do que hoje representa a ideia de fronteiras e identidades nacionais, não deixa de constituir um denominador comum que justifica a sua aglutinação num conjunto reconhecidamente heterogéneo mas unificado pelo olhar de Fernando Guerra. O seu trabalho, e basta passar pelo ultimasreportagens.com para o perceber, não se limita apenas a um acervo de imagens de arquitectura, valiosíssimo por sinal, pelo que significa de possibilidades de divulgação dentro e fora de portas; antes se institui como um discurso autónomo e original sobre a arquitectura portuguesa contemporânea.

 

RECONFIGURAR O MUNDO
Luís Urbano

Não acredito na objectividade da fotografia. Por mais que muitos tentem apagar as contingências subjectivas da vida quotidiana que contaminam os espaços puros que os arquitectos desenham, uma imagem de um qualquer objecto arquitectónico, ou simplesmente de um objecto, é sempre a imposição de um ponto de vista. De quem fotografa, de quem escolhe o enquadramento, de quem escolhe a luz, o tempo de exposição, o tipo de lente, a máquina. É um olhar que implica uma escolha, ou infinitas escolhas, e é por definição (definitivamente?) subjectivo.

Não acredito no mito do fotógrafo de arquitectura contemplador que acha possível escolher a priori um único olhar sintético que conjugue tudo o que uma obra de arquitectura encerra. A arquitectura é por definição múltipla, dependente de inúmeras variáveis, nunca totalmente apreensível, infinitamente interpretável. A percepção da arquitectura depende da conjugação de múltiplos pontos de vista, da reconstituição mental de inúmeros espaços.

Aldo Rossi, na sua “Autobiografia Científica” reconhece que “a observação das coisas permaneceu, provavelmente, como a minha mais importante educação formal e isto porque a observação se transforma mais tarde em memória”. Ao olhar para trás, Rossi cruza a sua própria cultura, a memória das coisas, “que consigo ver dispostas ordenadamente, como num herbário, num catálogo ou num dicionário”, com a imaginação. Este processo não é linear, havendo um cruzamento entre ambas que produz diferentes significados, isto é, o resultado dessa hibridação é mais do que a simples soma das partes. “Este catálogo, situado algures entre a imaginação e a memória, não é neutral. Reaparece quase sempre nalguns objectos constituindo a sua deformação e, em certa medida, a sua evolução”. O que observámos no passado reaparece na presença do novo, filtrado pela força da memória das coisas, permitindo um novo olhar, com sentido crítico. É a memória que forma o olhar, permitindo a deformação dos objectos, isto é, quando olhamos para um qualquer objecto, arquitectónico ou não, ele transfigura-se quando cruzado com a recordação daquilo que já vivemos.

O olhar de Fernando Guerra é um olhar de arquitecto. Para compreender o espaço, os arquitectos, eventualmente com uma intencionalidade mais consciente que os simples utilizadores, circulam pelos edifícios. Captam a espacialidade da arquitectura deambulando, perscrutando, fazendo associações de ideias, de formas, de dimensões. É através desse movimento que descobrem as infinitas variáveis do espaço arquitectónico, as singularidades que fazem distinguir um espaço significante da miríade de construções insignificantes que invadem o nosso campo visual. E fazem-no cruzando aquilo que vêem com as memórias de outros edifícios que transportam consigo, muitas vezes adquiridas através da observação mediada pela fotografia. A nossa cultura arquitectónica, na impossibilidade de visitar todos os edifícios do mundo, é maioritariamente construída através do olhar de outros.

Através da generosidade de nos oferecer múltiplos pontos de vista de um edifício, as reportagens fotográficas de Fernando Guerra aproximam-se da vivência real do espaço, ao permitir que reconstituamos um lugar através da soma de todas imagens. Nesse sentido aproxima-se também da linguagem cinematográfica, não só pela implícita ideia de movimento que as suas imagens transmitem mas também pelo sentido narrativo que lhes imprime o fotógrafo. E daí a necessidade, quase obsessiva, de incluir personagens nos seus enquadramentos. Por vezes personagens anónimas, outras vezes os arquitectos, muitas vezes o próprio fotógrafo. Certamente não por qualquer vontade de auto representação, mas pela necessidade de dar sentido e escala a um determinado espaço, que na ausência de uma figura humana se tornaria incompreensivelmente abstracto. Há uma vontade de que cada imagem encerre um fragmento de vida, uma história pessoal, mas onde os personagens são suficientemente indefinidos, vultos quase, para deixar o observador imaginar o quadro que entender. Como em Julius Schulman, as imagens de Fernando Guerra procuram, para além de representar a arquitectura, captar um sentido de lugar, uma atmosfera que define a época contemporânea. Mas o que em Schulman era intencionalmente encenado, com um sentido narrativo por vezes demasiado literal, em Guerra é intencionalmente difuso, permitindo imaginar todas as histórias que aí terão lugar.

A palavra perfeição encerra uma certa radicalidade, já que implica um estado limite, sem evolução possível. Quando se atinge a perfeição nada mais há a fazer senão contemplar o belo. Mas ao mesmo tempo a busca da perfeição pode ser um acto generoso. Quando se tem por objectivo encontrar as melhores imagens para representar a essência e o conceito de um edifício, está-se a responder aos desejos daqueles que o projectaram. Tal como os arquitectos reconstroem um mundo particular em cada projecto, procurando dar um sentido de unicidade a partir das variáveis com que se confrontam – do cliente ao lugar, da geografia ao orçamento, das contingências materiais às limitações estruturais – as fotografias de Fernando Guerra devolvem à arquitectura essa procura da perfeição possível, “intensificando a realidade retratada”, reconfigurando o mundo que a rodeia.

Mundo Perfeito, livro e exposição, mostra também a vontade de conjugar arquitecturas que partilham uma mesma identidade, a arquitectura feita em Portugal, hoje. Não fossem as conotações demasiado politizadas, mundo aqui poderia querer dizer mundo português. Mas um mundo português agora aberto aos outros mundos, plural, democrático, cosmopolita. A circunstância de serem obras feitas em território português ou por portugueses noutros territórios, e apesar da volatilidade do que hoje representa a ideia de fronteiras e identidades nacionais, não deixa de constituir um denominador comum que justifica a sua aglutinação num conjunto reconhecidamente heterogéneo mas unificado pelo olhar de Fernando Guerra. O seu trabalho, e basta passar pelo ultimasreportagens.com para o perceber, não se limita apenas a um acervo de imagens de arquitectura, valiosíssimo por sinal, pelo que significa de possibilidades de divulgação dentro e fora de portas; antes se institui como um discurso autónomo e original sobre a arquitectura portuguesa contemporânea.

 

FOTO-SÍNTESE
Nuno Grande

«A evolução recente daquilo a que podemos chamar “fotografia de arquitectura” tem sido um espelho eloquente das relações que a sociedade contemporânea estabelece com a produção arquitectónica.
Se olharmos esse espelho a partir do campo da arte, percebemos que, nunca como hoje, tantos criadores retrataram a arquitectura enquanto objecto das contradições dessa sociedade, expondo-a de forma crítica e crua. Que dizer, por exemplo, da visão de fotógrafos como Andreas Gursky, Thomas Ruff ou Axel Hütte?
Olhando para o outro lado do espelho, e desde o campo da cultura mediática, constatamos que, nunca como hoje, tantos “meios” retrataram a arquitectura como um produto sedutor dessa mesma sociedade, expondo-a de forma ostensiva e espectacularizada. Que dizer da profusão recente de artigos e imagens selectas de “arquitecturas de autor” em suplementos culturais e turísticos de jornais ou revistas de lifestyle?
Este duplo tratamento constitui um sinal dos tempos: no seu esforço de apropriação do quotidiano cultural e social, iniciado na década de 60, a arquitectura tornou-se, ela própria, num peão desse jogo extremado entre a reflexão crítica, na arte, e o consumo acrítico, no mercado. No mesmo sentido, a commodification da obra arquitectónica – isto é, a sua conversão num “consumível” –, dificulta hoje o posicionamento de um “fotógrafo de arquitectura” que se apresente, não como artista, nem como mercador de imagens, mas tão-somente como um viajante entre espaços.
É neste contexto que devemos situar o trabalho de Fernando Guerra, arquitecto e fotógrafo que, desde 1999, se vem afirmando no panorama nacional, documentando a produção arquitectónica portuguesa, e sobretudo a obra de uma nova geração de criadores. O seu apuro fotográfico sedimentou-se em sucessivas “reportagens” de viagem que, a partir de 1987, tomaram como tema central a paisagem urbana do Oriente, e sobretudo de Macau, cidade onde viveu alguns anos. Disparando compulsivamente a sua Reflex de 35 mm, sempre em punho, Fernando Guerra foi definindo um método errante mas diligente de retratar ambientes, gentes e pormenores que acabaria por distingui-lo da postura mais tradicional de outros fotógrafos portugueses já consagrados nesta área. Essa distinção estabeleceu-se não apenas na dimensão utilizada – raramente optando por câmaras de médio ou grande formato – como também no modo de apropriação da obra de arquitectura.
Assim, e enquanto outros estudam demoradamente os melhores ângulos, Fernando Guerra “deixa-se perder” no espaço, captando empiricamente essa descoberta irreflectida e inocente; enquanto outros instalam pacientemente as suas câmaras sobre tripés à espera da melhor luz, Guerra procura, irrequieto, a incerteza do “instante” em que uma sombra muda ou um vulto passa; enquanto outros retratam fria e analiticamente o seu objecto em apenas duas ou três exposições, ele colecciona centenas de imagens que reedita depois, enquanto síntese da sua “reportagem”. Uma postura demasiado “comercial” ou “artificial”, dirão uns; uma postura descomplexada, dizemos nós, que percebe o seu tempo e que define inteligentemente o seu lugar nesse jogo contemporâneo entre arte e mercado, a que nos referimos antes.
Fernando Guerra conhece as regras da composição fotográfica, a importância da luz, o poder de um enquadramento; isto é, compreende a fotografia como “ofício” artístico. Conhece, por outro lado, os mecanismos hoje impostos à edição de arquitectura, a importância de uma “foto-síntese”, o poder da massificação e da celeridade do consumo mediático; isto é, compreende a imagem como instrumento insubstituível da difusão cultural, algo que vem testando, juntamente com o seu irmão Sérgio, a partir do “sítio” digital que ambos criaram sobre o seu trabalho (contando hoje com mais de 250 obras fotografadas e mais de 1000 visitas diárias).
Poderá parecer-nos perverso que essa difusão nos “novos media” – em sites, blogues ou newsletters – se tenha tornado num meio comum de descoberta dos arquitectos e das suas obras, conferindo aos fotógrafos e webdesigners o papel que antes pertencia aos críticos e editores tradicionais; mas esta é a realidade global em que Fernando e Sérgio Guerra se movem e que procuram qualificar fazendo do seu “sítio” uma plataforma de cruzamento e de ligação entre tantos outros endereços e autores com diferentes aprofundamentos. Não surpreende, por isso, que num momento em que, a nível internacional, se acentua o interesse editorial pela nova arquitectura portuguesa – em publicações recentes, da Espanha ao Japão, da Itália à Rússia, da França à Coreia – as fotografias de Fernando Guerra preencham as capas e os conteúdos de revistas como Arquitectura Viva, L’Architecture d’Aujourd’hui, A+U ou Casabella, ou ainda da Wallpaper, Ícon, Blueprint, ou Frame. Embora distintas, todas elas constituem, como dissemos, faces do mesmo espelho.»

Excerto do texto publicado in “Mundo Perfeito – Fotografias de Fernando Guerra”, Publicações FAUP, 1ª edição, Porto 2008.

 

 


 

Sérgio Guerra
[email protected]

Nasceu em Lisboa, em 1975.

Licenciou-se em Arquitectura em 1998 pela Universidade Lusíada de Lisboa.

Trabalhou em diversos ateliers em Lisboa antes de fundar o atelier e estúdio FG+SG – Fotografia de Arquitectura, em sociedade com o seu irmão Fernando Guerra.

É o responsável pela produção das reportagens e gestão geral do atelier.

Fernando Guerra foi pioneiro na forma de fotografar e comunicar a arquitectura. Há 24 anos abriu o estúdio FG+SG em colaboração com seu irmão e juntos são responsáveis por grande parte da difusão da arquitectura contemporânea portuguesa, nos últimos vinte e quatro anos.

Fernando Guerra é fotógrafo de arquitectura. A sua formação, porém, é de arquitecto. O seu olhar divide-se entre dois modos distintos de construir o mundo. Por esta circunstância, ele encontra-se numa posição privilegiada para protagonizar a metamorfose do campo fotográfico que fará com que esta prática de criação de imagens se venha a identificar, em parte, com o próprio campo arquitectónico.

Para compreender o espaço, os arquitectos, eventualmente com uma intencionalidade mais consciente que os simples utilizadores, circulam pelos edifícios. Captam a espacialidade da arquitectura deambulando, perscrutando, fazendo associações de ideias, de formas, de dimensões. É através desse movimento que descobrem as infinitas variáveis do espaço arquitectónico, as singularidades que fazem distinguir um espaço significante da miríade de construções insignificantes que invadem o nosso campo visual. E fazem-no cruzando aquilo que vêem com as memórias de outros edifícios que transportam consigo, muitas vezes adquiridas através da observação mediada pela fotografia. A nossa cultura arquitectónica, na impossibilidade de visitar todos os edifícios do mundo, é maioritariamente construída através do olhar de outros.

É neste sentido que Fernando Guerra lança um olhar generoso sobre a arquitectura que regista. Entre os edifícios que fotografa, não se percebe, exactamente, um juízo de valor sobre os conteúdos da arquitectura; antes um controle, ao nível das emoções, que busca homogeneizar todos os registos. Portanto, cultiva-se a ausência de qualquer moralismo-crítico que possa interferir com o resultado final da imagem e que busca posicionar-se (arquitectonicamente) num plano neutral, valendo-se a si mesmo. É simultaneamente um mundo onde não há arquitecturas melhores, nem piores. O fotógrafo, ao contrário do fotógrafo-artista, é convocado e responde através do seu conhecimento de expert. Se manipula a imagem, isto é, se lhe retira um excesso qualquer de “realismo”, fá-lo consciente que trabalha num domínio de imparcialidade.

Os seus trabalhos são editados regularmente em diversas publicações tanto a nível nacional como internacional, em revistas como Casabella, Wallpaper*, Dwell, Icon, Domus, A+U, entre muitas outras.
A FG+SG colabora com diversos arquitectos portugueses como Álvaro Siza, Carlos Castanheira, Manuel Mateus, Manuel Graça Dias, Gonçalo Byrne, ARX Portugal, João luís Carrilho da Graça, Promontório Arquitectos; assim como, arquitectos internacionais como Márcio Kogan, Isay Weifeld, Arthur Casas, Zaha Hadid, Pei Cobb Freed & Partners entre outros.

Em 2012, foi nomeado Canon Explorer, assumindo o papel de embaixador da Canon Europa ao nível da fotografia de arquitetura.

O site ultimasreportagens.com tornou-se no ponto de partida para consultar arquitectura contemporânea portuguesa com mais de seiscentas reportagens online, bem como artigos especiais e publicações

A Canon reuniu um grupo dos mais destacados fotógrafos profissionais. Fernando Guerra foi convidado a integrar este programa internacional de fotógrafos, tornando-se assim membro do grupo “Explorers of Light”.

Fernando Guerra

Nasceu em 1970, em Lisboa.
Licenciou-se em arquitectura em 1993 pela Universidade Lusíada de Lisboa, trabalhou durante cinco anos em Macau como arquitecto (1994-1999).

Leccionou a cadeira de Projecto II no curso de Arquitectura da Arca-Euac (Escola Universitária das Artes de Coimbra), entre 1999 a 2005.

Certificado pela Epson Digigraphie® em 2007; desde 2008 agenciado por VIEW Pictures, Londres – Reino Unido; e também, desde 2006 agenciado por FAB PICS – International Architecture Photography, Colónia – Alemanha.

O seu trabalho encontra-se representado em diversas colecções particulares e públicas.

O Museu MoMa em Nova Iorque adquiriu em 2015 seis trabalhos de Fernando Guerra para a sua colecção permanente.

Textos | About

“A arquitectura da fotografia”
Manuel Graça Dias

“Reconfigurar o mundo”
Luís Urbano

“Mundo perfeito”
Ana Vaz Milheiro

“Foto-síntese”
Nuno Grande

O Fazedor
Pedro Gadanho

Já devem ter reparado que, dentro do universo da fotografia contemporânea, a fotografia de arquitectura se transformou, nos últimos anos, num campo à parte. Ganhou autonomia. Tem a sua história e as suas referências. Tem os seus autores e os seus subgéneros. Está prestes a lograr a perfeição.
Tal como a recurso à fotografia por parte da arte contemporânea detém um território especial –que por vezes se cruza com o do campo que aqui descrevo– também o olhar profissional sobre os mundos construídos da arquitectura ganhou as suas lógicas próprias.
Como se comprovava num recente seminário internacional sobre arquitectura e imagem, também este campo detém agora os seus historiadores, as suas estrelas e os seus debates internos.
E os media da fotografia de arquitectura começam, naturalmente, a imiscuir-se com os media da produção arquitectónica que essa fotografia retrata.
Enquanto os blogues internacionais começam a dedicar uma atenção particular aos autores deste campo – a entrevistá-los, a descobrir os seus temas, a analisar a especificidade da sua produção individual– um dia destes, que já não está longe, perguntar-nos-emos se os media da arquitectura não se tornaram, entretanto, nos media desta fotografia específica.
Poderá parecer perverso que tal aconteça, mas a verdade é que, num mundo construído sobre a lógica da imagem, a fotografia ajuda a construir a arquitectura – e, portanto, é justo que um dia lhe tome parcialmente o lugar.
As ficções arquitectónicas da fotografia contemporânea, a que já me referi noutros contextos, não são senão uma evidência sub-reptícia desta metamorfose.

Fernando Guerra é fotógrafo de arquitectura. A sua formação, porém, é de arquitecto. O seu olhar divide-se entre dois modos distintos de construir o mundo. Por esta circunstância, ele encontra-se numa posição privilegiada para protagonizar a metamorfose do campo fotográfico que fará com que esta prática de criação de imagens se venha a identificar, em parte, com o próprio campo arquitectónico.
Posso oferecer uma prova pessoal: sendo irónico que uma casa minúscula como a Casa Baltasar tenha tido uma projecção mediática tão proeminente, a imagem que teve o dom de projectar esta arquitectura menor para essa enorme visibilidade foi descoberta por Fernando Guerra.
O potencial estava lá, é certo, mas foi o olhar de Guerra que, entre outras imagens já antevistas, fixou em definitivo a espacialidade peculiar de um determinado ponto de vista.
Como acontece com outros, não se dá aqui o caso de que Fernando Guerra ambiciona transferir o seu desejo de fazer arquitectura para a elaboração de imagens que substituam a própria arquitectura. Mas a leitura e a interpretação também constroem mundos. E como na história dos cartógrafos de Jorge Luís Borges, pode acontecer que estes mundos se justaponham à realidade de forma tão justa que se vêm a confundir com ela.

Quando a FG+SG surgiu na arena da fotografia de arquitectura, oferecia aos arquitectos um modelo de negócio irresistível. Guerra não só fotografava, e bem, as obras de arquitectura, mas a sua presença estratégica na rede virtual funcionava, ainda, como uma importante plataforma de visibilidade para as imagens produzidas.
Construía-se, deste modo, não apenas um “mundo perfeito,” mas também as ferramentas perfeitas para a indispensável e desejável difusão das obras retratadas.
Com esta vantagem competitiva e o brio de um impecável profissionalismo, a FG+SG começou, primeiro inadvertidamente, depois conscientemente, a construir o mais vasto arquivo da arquitectura portuguesa contemporânea hoje disponível.
A sua obra fotográfica tornou-se expressiva de um potencial ainda inaudito na curta história da autonomia deste novo campo: a cartografia do seu arquivo tornou-se indistinguível da realidade da arquitectura portuguesa a que, naturalmente, todos os arquitectos portugueses aspiram pertencer.
Independentemente da sua própria vontade, Fernando Guerra tornou-se o fazedor do império.

Pedro Gadanho divide a sua actividade entre arquitectura, curadoria, crítica e docência universitária. É MA in Art & Architecture e realizou doutoramento na F.A.U.P., onde lecciona. É editor do blog ShrapnelContemporary e do bookazine Beyond, Short-Stories on the Post-Contemporary, em Amsterdão, contribuindo regularmente para outras publicações a nível internacional. Foi comissário de ‘Metaflux,’ representação portuguesa na Bienal de Veneza de Arquitectura de 2004, e de mostras como ‘Space Invaders,’ ‘Post. Rotterdam,’ ‘Pancho Guedes,Um modernista alternativo,’ e ‘Habitar Portugal 2006-2008.’ Integrou a direcção da ExperimentaDesign, entre 2000 e 2003. Os seus projectos de arquitectura incluem a Casa Laranja, em Carreço, o Art Center da Fundação Ellipse, e a Casa Baltasar, no Porto. shrapnelcontemporary

A ARQUITECTURA DA FOTOGRAFIA
Manuel Graça Dias

Teve que passar bastante tempo, depois de 1839 e dos primeiros daguerreotipos que reproduziam “quadros” postos à frente do fotógrafo (para alegria e espanto sobretudo daqueles que sempre tinham, secreta e miticamente, ambicionado poder um dia ficar fixados numa tela através do “génio” de um artista pintor), para que a fotografia ganhasse um estatuto próprio, como se sabe.

Se para a pintura foi fundamental essa data — para se poder começar a desvincular da obrigação de “reproduzir” o real, para se poder dedicar ao que sempre verdadeiramente lhe interessara (o recorte, os contrastes, a luz, a sombra, o despertar da cor ou o seu súbito desvanecimento, tomando como base troços visualizados do mundo real, mas também outras imagens: inventadas, sonhadas, derivadas ou irreconhecíveis) –, para a própria fotografia terá parecido muito pouco provável a saída imediata desse inicial universo de figuração e de composição em espelho, a devolver, simbólico, a quem se desejava ver retratado.

No entanto, ganha a “objectividade” da devolução da imagem, sobrava ainda o subjectivo “olhar” aberto através do quadrado onde batia a luz, nas costas do fole das câmaras fotográficas. O sublime da arte foi descoberto quando se compreendeu o encanto de re-olhar o que já conhecíamos, deixando “em fundo” garantido o “documento” e trazendo “para a frente”, a espécie de renovação rectangular que, simultaneamente, o isolava do mundo e do contexto.

[As “câmaras mentem tanto”, diz-nos Bill Watterson através da boca de Calvin (“Calvin & Hobbes”, Público, 15 de Outubro de 2002)].

A fotografia “documental” passou a existir (daí o seu encanto) neste estreito esmagamento temporal, entre a felicidade do acontecimento, do ambiente ou da acção a reproduzir e o vislumbrado novo modo de os “enquadrar” (com a assistência da “técnica”, que permitirá a melhor abertura face à luz, o melhor “foco”, a melhor profundidade de campo).

A “Fotografia de Arquitectura” inserindo-se nesta categoria, obrigará, ainda, suplementarmente, a um enorme rigor em qualquer dos níveis considerados.

Exigir-se-lhe-á, primeiro, que nos devolva a compreensão do espaço retratado. Tarefa impossível, porquanto o espaço e as suas múltiplas dimensões não se deixam “prender” na bidimensionalidade da convergência perspéctica da reprodução fotográfica; mas uma “aproximação”, uma “aproximação” que nos acorde as memórias de outras experiências e que nos sugestione o tipo de espaço, as preocupações do autor, o que sentiu o fotógrafo que o habitou antes de no-lo tentar devolver e à pesada leveza do que o envolve.

Quanto tempo (dias) aguardará pelo sol? Aquele sol — daquele dia — as sombras que provoca? Não para “falsear” na revelação a sua estadia, mas porque sentiu caracterizador (e então uma boa hipótese de sugestão), aquela particular sombra de um dia de Verão.

Depois o olhar, o tal quadrado ou quadro que é o interior do enquadramento: como vai o fotógrafo de arquitectura “enquadrar”? O que omitirá? De que cuidados e éticas se rodeará, com a caixa aberta perscrutando o construído? Procurando o real? Revendo o real?

Só depois a “técnica”, mediando ambas, pedida por ambas. E representar a Arquitectura irá exigir a ilusão de eliminar a distorção perspéctica, encontrando o non troppo herdado da composição renascentista, regressando à alvenaria plasmada em plano que o nosso olhar, educado por séculos de imagens, aprendeu a admitir. Entram as lentes ajustadas e as baterias de máquinas aqui; por vezes, ainda um pouco de photoshop, para anular um prematuro grafitti, uma mancha quase mínima ou uma sombra que só a cuidadosa observação posterior da imagem revelou.

Mostrar a arquitectura. Todos os arquitectos se julgam fotógrafos. Vítor Figueiredo especulava sobre o tema.

O que levará os arquitectos a sentirem-se tão à vontade por aí, sabendo nós que só de alguns — poucos –, nos interessarão as fotografias?

Os arquitectos emocionam-se com a arquitectura: com a do passado, com a moderna, com a qualidade e com a originalidade do espaço, com o acerto geométrico do espaço que o espaço parecerá conter. E querem guardar essas emoções. Querem (imaginam querer), mais tarde, poder olhar o pedaço de real, recompondo mentalmente esse real. Querem copiar, transportar aquela emoção, refundi-la, eventualmente, noutros contextos, também reais.

Muitos tropeçarão, por isso, na armadilha da “objectividade”. Outros divagarão sobre o olhar, propondo-nos outros olhares. A poucos sobrará a necessária paciência para, emocionados, aguardarem o acordar da manhã, o primeiro raio de sol ou então o último, a sombra longa estendida, o brilho no cerâmico, a passagem dos bandos de pássaros à hora da algazarra.

Na sua actividade solitária, privilegiarão os corredores vazios para melhor poderem, e mais à vontade, experimentar, testar, inventar o olhar.

Só quando virem passar ao longe fugaz um aluno, numa escola em férias, compreenderão então, quanto aquele vulto, subitamente, é de tal modo definitivo para a compreensão da dimensão do corredor, para o corte da luz que “rebenta” o fundo, para a inscrição da escala, face à altura do todo.

Mas a lenta artilharia técnica não se compadece com a frescura da reportagem que o arquitecto desejaria atenta, acordada e “plástica” face aos acontecimentos.

Ali, onde os acontecimentos seriam o espaço parado existente, mexido pela solene passagem do sol, no enfiado preciso com a porta-corredor-tubo, é o arquitecto-fotógrafo que, depois de tudo ajustar, emprestará ainda o seu corpo à imagem do espaço que anteviu, na ausência desse aluno que só verá do espaço a imagem mais tarde.

RECONFIGURAR O MUNDO
Luís Urbano

Não acredito na objectividade da fotografia. Por mais que muitos tentem apagar as contingências subjectivas da vida quotidiana que contaminam os espaços puros que os arquitectos desenham, uma imagem de um qualquer objecto arquitectónico, ou simplesmente de um objecto, é sempre a imposição de um ponto de vista. De quem fotografa, de quem escolhe o enquadramento, de quem escolhe a luz, o tempo de exposição, o tipo de lente, a máquina. É um olhar que implica uma escolha, ou infinitas escolhas, e é por definição (definitivamente?) subjectivo.

Não acredito no mito do fotógrafo de arquitectura contemplador que acha possível escolher a priori um único olhar sintético que conjugue tudo o que uma obra de arquitectura encerra. A arquitectura é por definição múltipla, dependente de inúmeras variáveis, nunca totalmente apreensível, infinitamente interpretável. A percepção da arquitectura depende da conjugação de múltiplos pontos de vista, da reconstituição mental de inúmeros espaços.

Aldo Rossi, na sua “Autobiografia Científica” reconhece que “a observação das coisas permaneceu, provavelmente, como a minha mais importante educação formal e isto porque a observação se transforma mais tarde em memória”. Ao olhar para trás, Rossi cruza a sua própria cultura, a memória das coisas, “que consigo ver dispostas ordenadamente, como num herbário, num catálogo ou num dicionário”, com a imaginação. Este processo não é linear, havendo um cruzamento entre ambas que produz diferentes significados, isto é, o resultado dessa hibridação é mais do que a simples soma das partes. “Este catálogo, situado algures entre a imaginação e a memória, não é neutral. Reaparece quase sempre nalguns objectos constituindo a sua deformação e, em certa medida, a sua evolução”. O que observámos no passado reaparece na presença do novo, filtrado pela força da memória das coisas, permitindo um novo olhar, com sentido crítico. É a memória que forma o olhar, permitindo a deformação dos objectos, isto é, quando olhamos para um qualquer objecto, arquitectónico ou não, ele transfigura-se quando cruzado com a recordação daquilo que já vivemos.

O olhar de Fernando Guerra é um olhar de arquitecto. Para compreender o espaço, os arquitectos, eventualmente com uma intencionalidade mais consciente que os simples utilizadores, circulam pelos edifícios. Captam a espacialidade da arquitectura deambulando, perscrutando, fazendo associações de ideias, de formas, de dimensões. É através desse movimento que descobrem as infinitas variáveis do espaço arquitectónico, as singularidades que fazem distinguir um espaço significante da miríade de construções insignificantes que invadem o nosso campo visual. E fazem-no cruzando aquilo que vêem com as memórias de outros edifícios que transportam consigo, muitas vezes adquiridas através da observação mediada pela fotografia. A nossa cultura arquitectónica, na impossibilidade de visitar todos os edifícios do mundo, é maioritariamente construída através do olhar de outros.

Através da generosidade de nos oferecer múltiplos pontos de vista de um edifício, as reportagens fotográficas de Fernando Guerra aproximam-se da vivência real do espaço, ao permitir que reconstituamos um lugar através da soma de todas imagens. Nesse sentido aproxima-se também da linguagem cinematográfica, não só pela implícita ideia de movimento que as suas imagens transmitem mas também pelo sentido narrativo que lhes imprime o fotógrafo. E daí a necessidade, quase obsessiva, de incluir personagens nos seus enquadramentos. Por vezes personagens anónimas, outras vezes os arquitectos, muitas vezes o próprio fotógrafo. Certamente não por qualquer vontade de auto representação, mas pela necessidade de dar sentido e escala a um determinado espaço, que na ausência de uma figura humana se tornaria incompreensivelmente abstracto. Há uma vontade de que cada imagem encerre um fragmento de vida, uma história pessoal, mas onde os personagens são suficientemente indefinidos, vultos quase, para deixar o observador imaginar o quadro que entender. Como em Julius Schulman, as imagens de Fernando Guerra procuram, para além de representar a arquitectura, captar um sentido de lugar, uma atmosfera que define a época contemporânea. Mas o que em Schulman era intencionalmente encenado, com um sentido narrativo por vezes demasiado literal, em Guerra é intencionalmente difuso, permitindo imaginar todas as histórias que aí terão lugar.

A palavra perfeição encerra uma certa radicalidade, já que implica um estado limite, sem evolução possível. Quando se atinge a perfeição nada mais há a fazer senão contemplar o belo. Mas ao mesmo tempo a busca da perfeição pode ser um acto generoso. Quando se tem por objectivo encontrar as melhores imagens para representar a essência e o conceito de um edifício, está-se a responder aos desejos daqueles que o projectaram. Tal como os arquitectos reconstroem um mundo particular em cada projecto, procurando dar um sentido de unicidade a partir das variáveis com que se confrontam – do cliente ao lugar, da geografia ao orçamento, das contingências materiais às limitações estruturais – as fotografias de Fernando Guerra devolvem à arquitectura essa procura da perfeição possível, “intensificando a realidade retratada”, reconfigurando o mundo que a rodeia.

Mundo Perfeito, livro e exposição, mostra também a vontade de conjugar arquitecturas que partilham uma mesma identidade, a arquitectura feita em Portugal, hoje. Não fossem as conotações demasiado politizadas, mundo aqui poderia querer dizer mundo português. Mas um mundo português agora aberto aos outros mundos, plural, democrático, cosmopolita. A circunstância de serem obras feitas em território português ou por portugueses noutros territórios, e apesar da volatilidade do que hoje representa a ideia de fronteiras e identidades nacionais, não deixa de constituir um denominador comum que justifica a sua aglutinação num conjunto reconhecidamente heterogéneo mas unificado pelo olhar de Fernando Guerra. O seu trabalho, e basta passar pelo ultimasreportagens.com para o perceber, não se limita apenas a um acervo de imagens de arquitectura, valiosíssimo por sinal, pelo que significa de possibilidades de divulgação dentro e fora de portas; antes se institui como um discurso autónomo e original sobre a arquitectura portuguesa contemporânea.

RECONFIGURAR O MUNDO
Luís Urbano

Não acredito na objectividade da fotografia. Por mais que muitos tentem apagar as contingências subjectivas da vida quotidiana que contaminam os espaços puros que os arquitectos desenham, uma imagem de um qualquer objecto arquitectónico, ou simplesmente de um objecto, é sempre a imposição de um ponto de vista. De quem fotografa, de quem escolhe o enquadramento, de quem escolhe a luz, o tempo de exposição, o tipo de lente, a máquina. É um olhar que implica uma escolha, ou infinitas escolhas, e é por definição (definitivamente?) subjectivo.

Não acredito no mito do fotógrafo de arquitectura contemplador que acha possível escolher a priori um único olhar sintético que conjugue tudo o que uma obra de arquitectura encerra. A arquitectura é por definição múltipla, dependente de inúmeras variáveis, nunca totalmente apreensível, infinitamente interpretável. A percepção da arquitectura depende da conjugação de múltiplos pontos de vista, da reconstituição mental de inúmeros espaços.

Aldo Rossi, na sua “Autobiografia Científica” reconhece que “a observação das coisas permaneceu, provavelmente, como a minha mais importante educação formal e isto porque a observação se transforma mais tarde em memória”. Ao olhar para trás, Rossi cruza a sua própria cultura, a memória das coisas, “que consigo ver dispostas ordenadamente, como num herbário, num catálogo ou num dicionário”, com a imaginação. Este processo não é linear, havendo um cruzamento entre ambas que produz diferentes significados, isto é, o resultado dessa hibridação é mais do que a simples soma das partes. “Este catálogo, situado algures entre a imaginação e a memória, não é neutral. Reaparece quase sempre nalguns objectos constituindo a sua deformação e, em certa medida, a sua evolução”. O que observámos no passado reaparece na presença do novo, filtrado pela força da memória das coisas, permitindo um novo olhar, com sentido crítico. É a memória que forma o olhar, permitindo a deformação dos objectos, isto é, quando olhamos para um qualquer objecto, arquitectónico ou não, ele transfigura-se quando cruzado com a recordação daquilo que já vivemos.

O olhar de Fernando Guerra é um olhar de arquitecto. Para compreender o espaço, os arquitectos, eventualmente com uma intencionalidade mais consciente que os simples utilizadores, circulam pelos edifícios. Captam a espacialidade da arquitectura deambulando, perscrutando, fazendo associações de ideias, de formas, de dimensões. É através desse movimento que descobrem as infinitas variáveis do espaço arquitectónico, as singularidades que fazem distinguir um espaço significante da miríade de construções insignificantes que invadem o nosso campo visual. E fazem-no cruzando aquilo que vêem com as memórias de outros edifícios que transportam consigo, muitas vezes adquiridas através da observação mediada pela fotografia. A nossa cultura arquitectónica, na impossibilidade de visitar todos os edifícios do mundo, é maioritariamente construída através do olhar de outros.

Através da generosidade de nos oferecer múltiplos pontos de vista de um edifício, as reportagens fotográficas de Fernando Guerra aproximam-se da vivência real do espaço, ao permitir que reconstituamos um lugar através da soma de todas imagens. Nesse sentido aproxima-se também da linguagem cinematográfica, não só pela implícita ideia de movimento que as suas imagens transmitem mas também pelo sentido narrativo que lhes imprime o fotógrafo. E daí a necessidade, quase obsessiva, de incluir personagens nos seus enquadramentos. Por vezes personagens anónimas, outras vezes os arquitectos, muitas vezes o próprio fotógrafo. Certamente não por qualquer vontade de auto representação, mas pela necessidade de dar sentido e escala a um determinado espaço, que na ausência de uma figura humana se tornaria incompreensivelmente abstracto. Há uma vontade de que cada imagem encerre um fragmento de vida, uma história pessoal, mas onde os personagens são suficientemente indefinidos, vultos quase, para deixar o observador imaginar o quadro que entender. Como em Julius Schulman, as imagens de Fernando Guerra procuram, para além de representar a arquitectura, captar um sentido de lugar, uma atmosfera que define a época contemporânea. Mas o que em Schulman era intencionalmente encenado, com um sentido narrativo por vezes demasiado literal, em Guerra é intencionalmente difuso, permitindo imaginar todas as histórias que aí terão lugar.

A palavra perfeição encerra uma certa radicalidade, já que implica um estado limite, sem evolução possível. Quando se atinge a perfeição nada mais há a fazer senão contemplar o belo. Mas ao mesmo tempo a busca da perfeição pode ser um acto generoso. Quando se tem por objectivo encontrar as melhores imagens para representar a essência e o conceito de um edifício, está-se a responder aos desejos daqueles que o projectaram. Tal como os arquitectos reconstroem um mundo particular em cada projecto, procurando dar um sentido de unicidade a partir das variáveis com que se confrontam – do cliente ao lugar, da geografia ao orçamento, das contingências materiais às limitações estruturais – as fotografias de Fernando Guerra devolvem à arquitectura essa procura da perfeição possível, “intensificando a realidade retratada”, reconfigurando o mundo que a rodeia.

Mundo Perfeito, livro e exposição, mostra também a vontade de conjugar arquitecturas que partilham uma mesma identidade, a arquitectura feita em Portugal, hoje. Não fossem as conotações demasiado politizadas, mundo aqui poderia querer dizer mundo português. Mas um mundo português agora aberto aos outros mundos, plural, democrático, cosmopolita. A circunstância de serem obras feitas em território português ou por portugueses noutros territórios, e apesar da volatilidade do que hoje representa a ideia de fronteiras e identidades nacionais, não deixa de constituir um denominador comum que justifica a sua aglutinação num conjunto reconhecidamente heterogéneo mas unificado pelo olhar de Fernando Guerra. O seu trabalho, e basta passar pelo ultimasreportagens.com para o perceber, não se limita apenas a um acervo de imagens de arquitectura, valiosíssimo por sinal, pelo que significa de possibilidades de divulgação dentro e fora de portas; antes se institui como um discurso autónomo e original sobre a arquitectura portuguesa contemporânea.

FOTO-SÍNTESE
Nuno Grande

«A evolução recente daquilo a que podemos chamar “fotografia de arquitectura” tem sido um espelho eloquente das relações que a sociedade contemporânea estabelece com a produção arquitectónica.
Se olharmos esse espelho a partir do campo da arte, percebemos que, nunca como hoje, tantos criadores retrataram a arquitectura enquanto objecto das contradições dessa sociedade, expondo-a de forma crítica e crua. Que dizer, por exemplo, da visão de fotógrafos como Andreas Gursky, Thomas Ruff ou Axel Hütte?
Olhando para o outro lado do espelho, e desde o campo da cultura mediática, constatamos que, nunca como hoje, tantos “meios” retrataram a arquitectura como um produto sedutor dessa mesma sociedade, expondo-a de forma ostensiva e espectacularizada. Que dizer da profusão recente de artigos e imagens selectas de “arquitecturas de autor” em suplementos culturais e turísticos de jornais ou revistas de lifestyle?
Este duplo tratamento constitui um sinal dos tempos: no seu esforço de apropriação do quotidiano cultural e social, iniciado na década de 60, a arquitectura tornou-se, ela própria, num peão desse jogo extremado entre a reflexão crítica, na arte, e o consumo acrítico, no mercado. No mesmo sentido, a commodification da obra arquitectónica – isto é, a sua conversão num “consumível” –, dificulta hoje o posicionamento de um “fotógrafo de arquitectura” que se apresente, não como artista, nem como mercador de imagens, mas tão-somente como um viajante entre espaços.
É neste contexto que devemos situar o trabalho de Fernando Guerra, arquitecto e fotógrafo que, desde 1999, se vem afirmando no panorama nacional, documentando a produção arquitectónica portuguesa, e sobretudo a obra de uma nova geração de criadores. O seu apuro fotográfico sedimentou-se em sucessivas “reportagens” de viagem que, a partir de 1987, tomaram como tema central a paisagem urbana do Oriente, e sobretudo de Macau, cidade onde viveu alguns anos. Disparando compulsivamente a sua Reflex de 35 mm, sempre em punho, Fernando Guerra foi definindo um método errante mas diligente de retratar ambientes, gentes e pormenores que acabaria por distingui-lo da postura mais tradicional de outros fotógrafos portugueses já consagrados nesta área. Essa distinção estabeleceu-se não apenas na dimensão utilizada – raramente optando por câmaras de médio ou grande formato – como também no modo de apropriação da obra de arquitectura.
Assim, e enquanto outros estudam demoradamente os melhores ângulos, Fernando Guerra “deixa-se perder” no espaço, captando empiricamente essa descoberta irreflectida e inocente; enquanto outros instalam pacientemente as suas câmaras sobre tripés à espera da melhor luz, Guerra procura, irrequieto, a incerteza do “instante” em que uma sombra muda ou um vulto passa; enquanto outros retratam fria e analiticamente o seu objecto em apenas duas ou três exposições, ele colecciona centenas de imagens que reedita depois, enquanto síntese da sua “reportagem”. Uma postura demasiado “comercial” ou “artificial”, dirão uns; uma postura descomplexada, dizemos nós, que percebe o seu tempo e que define inteligentemente o seu lugar nesse jogo contemporâneo entre arte e mercado, a que nos referimos antes.
Fernando Guerra conhece as regras da composição fotográfica, a importância da luz, o poder de um enquadramento; isto é, compreende a fotografia como “ofício” artístico. Conhece, por outro lado, os mecanismos hoje impostos à edição de arquitectura, a importância de uma “foto-síntese”, o poder da massificação e da celeridade do consumo mediático; isto é, compreende a imagem como instrumento insubstituível da difusão cultural, algo que vem testando, juntamente com o seu irmão Sérgio, a partir do “sítio” digital que ambos criaram sobre o seu trabalho (contando hoje com mais de 250 obras fotografadas e mais de 1000 visitas diárias).
Poderá parecer-nos perverso que essa difusão nos “novos media” – em sites, blogues ou newsletters – se tenha tornado num meio comum de descoberta dos arquitectos e das suas obras, conferindo aos fotógrafos e webdesigners o papel que antes pertencia aos críticos e editores tradicionais; mas esta é a realidade global em que Fernando e Sérgio Guerra se movem e que procuram qualificar fazendo do seu “sítio” uma plataforma de cruzamento e de ligação entre tantos outros endereços e autores com diferentes aprofundamentos. Não surpreende, por isso, que num momento em que, a nível internacional, se acentua o interesse editorial pela nova arquitectura portuguesa – em publicações recentes, da Espanha ao Japão, da Itália à Rússia, da França à Coreia – as fotografias de Fernando Guerra preencham as capas e os conteúdos de revistas como Arquitectura Viva, L’Architecture d’Aujourd’hui, A+U ou Casabella, ou ainda da Wallpaper, Ícon, Blueprint, ou Frame. Embora distintas, todas elas constituem, como dissemos, faces do mesmo espelho.»

Excerto do texto publicado in “Mundo Perfeito – Fotografias de Fernando Guerra”, Publicações FAUP, 1ª edição, Porto 2008.

Sérgio Guerra

Nasceu em Lisboa, em 1975.

Licenciou-se em Arquitectura em 1998 pela Universidade Lusíada de Lisboa.

Trabalhou em diversos ateliers em Lisboa antes de fundar o atelier e estúdio FG+SG – Fotografia de Arquitectura, em sociedade com o seu irmão Fernando Guerra.

É o responsável pela produção das reportagens e gestão geral do atelier.