Entrevista a Fernando Guerra por Ana Filipa Amaro
Arquitecto de formação, Fernando Guerra trocou a régua e o esquadro pela máquina fotográfica. Perdeu-se um arquitecto, ganhou-se um dos melhores fotógrafos de arquitectura contemporânea em Portugal.
Chega de carro, que estaciona perto da Escola de Música, em Benfica. Sai meio apressado, cumprimenta a equipa da Fora de Série e fica com os olhos pregados às paredes da obra projectada por João Luís Carrilho da Graça e por ele fotografada. “A cor desapareceu, não imaginam como este amarelo era vivo…”, diz Fernando Guerra, ainda meio desnorteado com a forma como o tempo castigou não só as paredes, mas também o chão e as escadas em madeira e os jardins que compõem uma outra música, esta arquitectural.
Mas é por isto mesmo que o trabalho de Fernando Guerra é especial. As fotografias que tira dos trabalhos dos arquitectos são momentos que se eternizam no tempo e onde o amarelo não deixa nunca de ser “vivo”. O nome e o trabalho do fotógrafo português de arquitectura são, há já alguns anos, incontornáveis. Não só em Portugal mas no resto do mundo, com provas dadas nos seus quatro cantos. Com um olhar rigoroso, cioso do detalhe, Fernando Guerra trabalha a luz como poucos, a luz que lhe dita os dias, a meteorologia com quem joga ao jogo do gato e do rato.
Em conjunto com o irmão, Sérgio Guerra, Fernando leva a assinatura da empresa, FG+SG, a ser procurada por arquitectos mundiais como Zaha Hadid ou Richard Meier, e arquitectos nacionais como Álvaro Siza ou Nuno e José Mateus, do atelier ARX; a ser publicada por revistas internacionais como a “Wallpaper*”; ou a ser procurada no site ultimasreportagens.com como quem procura uma obra de arte. De arquitectura. De fotografia, claro.
Tem alguma história deste lugar, a Escola de Música, para contar?
É um privilégio fotografar a obra do João Luís Carrilho da Graça. Um dia, quando visitámos esta escola com um grupo de espanhóis, o João Luís confidenciou-me, preocupado, que as minhas fotografias eram tão bonitas que tinha receio que as pessoas ao visitarem a obra ficassem desiludidas. Seria impossível que isso acontecesse, dado o nível raro da obra deste arquitecto, mas foi um dos maiores elogios que podia ter ouvido.
Fotografia e arquitectura. Em que medida é que estas duas artes se tocam?
Para mim não só se tocam, como já se fundiram há muitos anos. Tenho dificuldade em separá-las, por isso nem tento. Mas olhando de uma forma mais distante, têm, por exemplo, em comum, o rigor com que precisam de ser feitas. Talvez esse rigor as torne áreas menos artísticas do que outras, já que existe um sentido prático ou um objectivo em cada uma delas e não seguem apenas a vontade do artista.
Estudou arquitectura por gosto ou por ser uma “profissão à moda antiga”?
Foi uma escolha muito natural. Desde miúdo que queria desenhar casas. Nunca pensei em fazer outra coisa. Tive influência, provavelmente, do meu pai, que é arquitecto, e o facto de ter crescido a vê-lo trabalhar no seu atelier e de o acompanhar nas viagens de trabalho que fazia.
Chegou a trabalhar como arquitecto?
Quando me formei, em 1993, fui para Macau para trabalhar seis meses num atelier local. O meu primeiro trabalho foi escolher as cores para os edifícios de uma nova cidade que ia crescer entre a ilha da Taipa e a de Coloane. Altamente intimidatório para começar. Acabei por lá ficar cinco anos, que passei numa rotina de trabalhos que adorava. E se, no entanto, não os fotografava, não passava um dia sem fazer fotografias na rua, sem encomendas ou objectivos especiais.
O que aconteceu para mudar para a fotografia?
Não existe um momento em que possa dizer que comecei apenas a fotografar. Até porque já o faço desde os 16 anos. Há 24 anos que ando com uma máquina na mão. Mas só há 11 anos, quando regressei de Macau, é que comecei com o meu irmão a propor aos principais ateliers fazer fotografias de obras. Com um mercado quase inexistente, poucas revistas e o trabalho a ser quase todo feito por um fotógrafo no Porto e outro em Lisboa, foi complicado começar. Por isso, mudámos a forma de trabalhar. Fotografava primeiro e ia ter com os ateliers depois, já com o trabalho pronto. Foi um investimento grande, muito pessoal, mas que valeu a pena. Aos poucos começámos a ter mais trabalho. E fomos crescendo. Hoje, quem começa nesta actividade faz um site e fica à espera que o telefone toque ou que o email chegue. O mercado existe. É a principal diferença.
Tem um curso de fotografia ou é tudo instintivo?
Nunca tirei um curso de fotografia. A fotografia tem um lado técnico que se aprende rapidamente. O mais importante na fotografia é saber ver. E isso não se ensina. Pode-se treinar e metodizar a caça das imagens, mas esse percurso deve ser pessoal.
Em que medida é que a fotografia de arquitectura é especial? O que diz a quem tem tiradas do género: “andam a fotografar paredes”?
Num mundo construído sobre a lógica da imagem, a fotografia de arquitectura ajuda a construir a arquitectura. O que não é pouco. É especial por ser um elemento de comunicação essêncial para o arquitecto que necessita de divulgar a sua obra e essêncial para o público que a quer ver, mas que muitas vezes não a pode visitar, quer por se tratar de uma obra privada, quer pela distância. Este tipo de fotografia não muda o mundo, como uma fotografia de um conflito pode ajudar a fazer, mas faz parte da própria arquitectura como elemento de promoção, documentação e investigação. As fotografias fornecem provas. Qualquer coisa de que se ouve falar, mas de que se duvida, parece ficar provado graças a uma fotografia. Numa das variantes da sua utilidade, uma imagem incrimina. Numa outra versão da sua utilidade, uma fotografia justifica. Mas sim, no final do dia posso dizer que passei o dia a fotografar paredes. Mas digo-o com muito orgulho.
Tenta sempre nos seus trabalhos introduzir o elemento humano. Qual é a importância de o ter?
Um dos motivos para não ter começado a trabalhar em fotografia de arquitectura mais cedo foi o facto de este tipo de fotografia ser tradicionalmente aborrecido, e como arquitecto sentia isso muito próximo. A fotografia de arquitectura tradicional baseou-se quase sempre em imagens despidas de gente, frias, quase clínicas. Passagens rápidas por uma obra. Sem tempo para detalhes que, muitas vezes, não só enriquecem a obra como lhe dão significado. Por outro lado, sempre fiz imagens na rua de situações que não se repetiam facilmente, fosse o passar de uma pessoa, de um gato, de uma bicicleta, de uma nuvem, ou de miúdos que brincavam. Instintivamente acabei por juntar o rigor que precisamos de ter como base na fotografia de arquitectura com o espontâneo da fotografia de rua. No entanto, não sei se tenho um estilo definitivo, até porque tento mudar a forma como fotografo todos os dias.
Como “internacionalizou” o seu nome?
Além de não tirar férias há uns anos, talvez o que mais tenha ajudado tenha sido a comunicação do que fazemos ou a forma como a fazemos. Em 2003, e numa altura em que todos os sites de fotógrafos tinham uma senha para entrar nos respectivos sites, criámos o ultimasreportagens.com, que começou por ser uma pequena e despretensiosa biblioteca de arquitectura contemporânea portuguesa e que, com os anos, se tornou, de alguma forma, numa referência com quase 500 trabalhos ‘online’. A internacionalização foi, como tudo o resto na FG+SG, muito gradual e nunca procurada como um fim. Aconteceu simplesmente. Há uns anos quando começaram a aparecer-me encomendas de clientes como Zaha Hadid, I.M. Pei, Jordi Badia, Richard Meier e Isay Wenfield, apercebi-me que as publicações, tanto em papel, como na Web, começavam a dar alguma visibilidade ao trabalho da FG+SG e que o retorno eram novas encomendas. Hoje em dia, passo uma parte significativa do mês fora de Portugal em reportagens diversas em que tanto fotografo uma casa familiar, um hotel de luxo ou um aeroporto. O que é bom, já que existem 365 dias de sol num ano e eu só preciso de estar no sítio certo, que nem sempre é em Portugal. Independentemente de ser em Portugal onde mais gosto de trabalhar.
Qual o trabalho que marcou a sua carreira?
É difícil a escolha, mas talvez destaque dois trabalhos: A casa Toló, do Alvarinho Siza Vieira, e uma obra do seu pai, Álvaro Siza, na Coreia, uma pequena galeria num jardim perto de Seul. Não só pelas imagens que correram bem, mas por me terem ajudado a chegar a muitos editores internacionais numa altura em que um envio de um email acabaria, geralmente, na caixa de ‘spam’. Essa atenção permitiu-me estabelecer relações de trabalho onde não existiam. Só a casa Toló teve mais de 60 publicações nacionais e internacionais e dezenas de capas.
É essencial que um fotógrafo de arquitectura seja também arquitecto?
Não é condição mas, regra geral, todos os fotógrafos que conheço e que fazem este tipo de trabalho o são. Há uma predisposição para olhar para a arquitectura de uma forma mais clara e directa. É relativamente fácil como arquitecto perceber não só o projecto, mas o conceito da obra, o essencial a fotografar. Depois, só é preciso saber fotografar.
O tempo, as condições meteorológicas são o pior inimigo de um fotógrafo?
Para mim são. O trabalho depende tanto da obra como da meteorologia. A única coisa que pode comprometer a criatividade num trabalho é a falta de boa luz. Não há desculpas para um trabalho ficar menos bem.
Não sente que pode ter passado ao lado de uma grande carreira enquanto arquitecto?
Perguntam-me muitas vezes se não tenho saudades de projectar. E digo sempre que sim. Mas projectar é uma coisa e acompanhar uma obra durante uns 3 ou 4 anos é outra. Estou demasiado habituado ao facto de, passado um mês da sessão, ter mais uma obra feita em vez de ter de esperar 5 anos e passar por burocracias de regulamentos e legalizações. No entanto, não estou reformado, não me sinto de todo assim.
Tem trabalhos publicados na “Wallpaper*”, uma das mais famosas revistas de arquitectura. As revistas são a maior fonte de trabalho?
Sempre vi as publicações mais como parceiras na comunicação do projecto de um cliente, do que como fontes de trabalho. É raro ter uma encomenda de uma revista, apesar de, curiosamente, a “Wallpaper*” ser uma das que mais me encomenda trabalhos, que vão desde fotografar um hotel em Évora ao lançamento de um novo automóvel em Espanha.
Pergunta da praxe: Quem é o seu arquitecto favorito, português e estrangeiro? E o fotógrafo?
Português, o arquitecto Álvaro Siza, com quem tenho o privilégio de trabalhar há alguns anos. Estrangeiro, o arquitecto brasileiro Isay Wenfield. Quanto aos fotógrafos, tenho muitas referências, mas aquele que mais influenciou a minha forma de olhar o mundo talvez seja o David Alan Harvey, um fotógrafo da Magnum.
Um lugar “arquitectónicamente” especial.
A minha casa, porque, provavelmente, é onde passo menos tempo do que gostaria. Fica perto de Lisboa e é um projecto meu, mas nunca a fotografei. E provavelmente não o vou fazer. Talvez não precise. Está sempre ali…
Portugal é um lugar fácil para se trabalhar fotografia de arquitectura?
Portugal é não só um lugar fácil como um dos melhores. Não só temos uma arquitectura única e internacionalmente reconhecida, como o país se atravessa de uma ponta à outra em poucas horas.
O que lhe dá mais “gozo” fotografar?
Tanta coisa! O dia-a-dia já me dá imenso gozo registar. Mesmo que não esteja a fotografar comercialmente, até uma ida para o atelier pode servir para um registo qualquer que me dê prazer. E, claro, as viagens, as reportagens que saem da minha rotina arquitectónica, como os trabalhos que faço de moda para o meu amigo José António Tenente, ou, simplesmente, fotografar as minhas filhas, tudo sabe bem para depois regressar às fotografias de casas.
Quando deixa a máquina fotográfica em casa?
Nunca consigo deixar a máquina em casa. Nem mesmo quando vou às compras mais banais. Já faz parte de mim. Mesmo que nunca a use, está ali comigo.
Está com algum projecto em mãos?
Várias monografias sobre arquitectos portugueses, novas edições limitadas de fotografias e muitas viagens para novos trabalhos. É um desafio, mas é essencial não parar de pensar e reinventarmo-nos para sobreviver. Ninguém vive da fama nesta área. Todos os dias são uma prova nova, onde os “êxitos” passados nada adiantam nessa sessão. Superá-la é a única resposta possível.