FG+SG fotografia de arquitectura | architectural photography
“Um livro de esquissos… de capas pretas e bom papel”
Carlos Castanheira

Regularmente convido o Álvaro Siza para jantar lá em casa. Há sempre um pretexto e sobretudo há sempre alguns estrangeiros, amigos, clientes, que justificam o jantar e os convites. Mas não são só estrangeiros a razão do jantar, há também a razão do jantar, pelo jantar. Mas há também os jantares com o Nuno Higino, amigo, por ser responsável pela ideia de encomendar o projecto da Igreja de Santa Maria no Marco de Canaveses, pela sua realização e por ser amigo.

Os jantares, pois já aconteceram alguns, têm sempre um tema. Uma vez foi a necessidade de ilustrar um livro de poemas, do Nuno Higino, para crianças. Perguntou-me qual a minha opinião em convidar o Siza para ilustrar os poemas e eu achei por bem pensar num jantarzinho. Há que falar com a Clara, companheira e produtora dos jantares, com um toque italiano. Eu trato dos líquidos. O convite foi aceite, como habitual, marcada data e as diligências de quem transporta o Siza e como chegar lá a casa, pois não é fácil, felizmente.
O jantar começa sempre na cozinha, com umas coisinhas de sabor transalpino e líquidos nacionais, daí se passa à mesa e enquanto se janta fala-se de tudo, de nada e de quase tudo.

No final, de passagem pelo café, a Clara meticulosamente mas também distraidamente pergunta: Siza, vai uma grapa ou um whisky? E a resposta é sempre a mesma: Ohh! Uma grapa e depois o whisky!
Com a grapa passamos ao tema principal do jantar; os poemas sobre cavalos para o livro que se viria a chamar: Todos os cavalos e mais sete.
O Nuno Higino tinha preparado os vinte poemas em folhas A4, com os textos no canto superior esquerdo, curtos, quase todos, alguns em coluna deixavam muito espaço livre.
Ora vamos lá a ver esses poemas, solicita o Siza.
Lê o primeiro, definição, e a reacção é imediata, aproveita o espaço livre e sai desenho.

Segue-se o segundo; lê e sai desenho; o terceiro, o quarto, o quinto, nós calados a fazer a recepção, estupefactos apesar de habituados. A intenção era passar-lhe os poemas para que o Siza, com tempo, fizesse as ilustrações, e ali estava ele, a seu tempo, poema a poema, copo a copo, esquisso a esquisso, a por a alma no papel quase como um cantor de improviso, ao desafio. É necessário registar que o tema lhe é apetecível: cavalos e as histórias à volta de cavalos, apesar de só ter montado em auto-retratos armado de condotieri.
Chegamos ao último, ele, nós, nós e ele, o vigésimo, mas ainda falta a capa e outras brincadeiras. Acabam por ser vinte e quatro.
A noite tornou-se madrugada, para além do desenho houve conversa, foi agradável e proveitoso o jantar. Há que ir para casa pois amanhã é dia de trabalho, como sempre.

No último jantar com o Álvaro e o Nuno, o tema ou razão era outra; falar sobre a sua tese de doutoramento em filosofia estética. Uma conversa com o personagem e razão da tese vinha mesmo a calhar e para este tipo de conversa nada melhor que um jantar, mais um dentro dos mesmos moldes que tornam a rotina algo agradável
O jantar seguia e chegado ao café, da grapa e do whisky, sem razão chegámos à conclusão que depois de tantos anos de contacto e tantos esquissos, o Siza nunca tinha desenhado o retrato do Nuno. É para já! mas falta o papel! Clara corre pelo papel e volta com um belo livro de capas pretas e bom papel. Nestas coisas, com o Siza por perto, nunca deverá faltar papel e lápis. É que é mesmo necessário. Neste caso, providencialmente, até havia um livro, de capas pretas e bom papel.
O Nuno faz pose, o Siza abre o livro, passa a primeira folha, que deixa em branco (porque será que há o hábito de deixar a primeira folha em branco?) e começa, em tom de conversa, molhando o bico no copo de whisky com uma pedra, o retrato. Rapidamente o dá por terminado, mas vemos que não está satisfeito.
Segue-se a conversa, fuma um cigarro, mais um entre tantos, repega no lápis, de mina mole, para fazer um rabisco, para explicar melhor o tema de conversa. Recomeça com mais outro retrato do Nuno, segue-se outro desenho. Chama a Clara, o Riccardo e a Sara, e sai outro desenho, belo, dos três. A conversa segue; tenho alguns esquissos do Siza, até feitos com os olhos fechados, vou buscá-lo, encaixilhado; é lindíssimo, uma mulher, bela, de perfil, de olhar maroto, de um só traço, mas não tenho nenhum com a mão esquerda. É para já! sai um desenho de um torço de homem, com data e assinatura, tudo à esquerda. Outro retrato e mais outro, desta vez da minha pessoa. Outro retrato, agora auto.

Com o avançar da noite, do fumo, da conversa, dos líquidos, os temas variam. Aparecem mulheres, homens, torsos, mulheres e uma só mulher, cavalos, cavalos com cavaleiros, amazonas com cavalos, amazonas sem cavalos, corpos mutilados de beleza, com beleza, posições várias, humanas, animalescas, às vezes quase eróticas, sobre-humanas. Parece magia, que entra no livro. Fecha-o para daqui a pouco o abrir, desenhar e voltar a fechar. O ritmo é lento mas alucinante. Já agora, falta pouco, há que acabar o livro. Nem a cartolina da capa se safa.

Fecha-o. Dá por termina a tarefa, vê-se que deu gozo. Mais um gole, mais um cigarro. A conversa já vai longa, a madrugada já é outro dia.
Como em qualquer trabalho o factor dúvida está-lhe sempre presente e volta ao livro para avaliar, mais a frio, o resultado. Há uma página em branco, a da primeira folha. Não perde tempo e um cavalo e seu cavaleiro a ocupam. Lápis ainda há … mas papel não.

É já tarde, os miúdos dormem no sofá. Fez sessenta e dois desenhos no livro de capas pretas e bom papel. É pena estragar este livro, tirando-lhe algumas páginas. O Nuno terá que esperar outra ocasião para ter um retrato feito pelo Siza. Haverá certamente outros jantares, outro projecto e papel e lápis e …. o Siza é assim mesmo, um mundo de desenho, de treino de desenho, quase ou mesmo obsessão, que leva, tantas vezes, à perfeição, a sua, à de um livro de capas pretas e bom papel com sessenta e dois esquissos, feitos a conversar sobre coisas sérias, algumas anedotas, muito fumo, algum álcool e muito, muito talento, depois de jantar.

Uma última discussão, de amigos: quem terá que levar o automóvel?
É que sair de minha casa é mais difícil do que lá chegar.

Nice, 9 de Novembro de 2006

Lápis sobre papel 297x210mm

Lápis sobre papel 297x210mm

Lápis sobre papel 297x210mm

Lápis sobre papel 297x210mm

“Ao Jantar”
Carlos Castanheira

Carrego comigo uma enormidade de desenho.
Em casa de amigos, recolho memórias antigas e recentes de desenhos que o Álvaro Siza faz ao jantar. Antes, durante e depois.

São desenhos desinibidos, libertos da carga de trabalhos e dos problemas diários. Por vezes, enraivecidos pelo conteúdo das críticas dos amigos, inimigos, amigos-inimigos – e a secreta conspiração.
Sempre amaciados pelos vinhos e o suave torpor dos destilados, apaparicados pelo calor da amizade.

Desenhos gerados em lugares recônditos de viagens de grupo, no sofá de alguma casa, num restaurante, entre amigos, admiradores, desconhecidos que já o não são.

Usa o papel que estiver à mão, quase sempre de má qualidade, o caderno preto, o caderno de outros, as folhas texturadas de reciclado, o lápis, que tem que ser mole, a BIC, a tinta permanente, o que ali estiver, à mão. a grappa ou o whisky acrescentam textura, tonalidades e odores. Outras vezes, pequenos furos de cigarro conferem ao desenho uma antiguidade precoce.

Desenha, desenha, em ritmo acelerado como se uma encomenda tivesse que ser entregue, urgente. Quase sempre é lento, sonolento, mas atento. Parece preguiçoso: começa, recomeça, vê e revê, faz e refaz.

Risca com traço seguro, mas incerto. Procura uma justeza que sempre foge à evidência. Rabisca, rabisca, rabisca na correcção. Traça um fio de linha único, como se fosse um traço mágico de percurso evidente e fácil. Começa pela pata retorcida, percorre a coxa, a garupa, a crina, as narinas. E o cavalo já está desenhado.

Retrata o grupo enquanto fuma, sorve golinhos de whisky com duas pedras a navegar. Outros se seguirão.

A ponta percorre o papel. Há modelos mais fáceis, pelo hábito ou pela génese. Outros são mais difíceis. Há os irrequietos, difíceis de captar. Há os ausentes que, no final, e num gesto mágico, são ali colocados, como hoje se faz no photoshop. O ‘riscador’ também aparece, quase sempre: ou na totalidade, ou em parte, pela presença da mão que desenha.

Confiaram-me estas frágeis folhas carregadas de lembranças, de histórias, de serões bem passados, ao longo de muitos anos, onde gerações são retratadas. Os cães sucederam-se, os gatos também. As musas nunca faltaram, sempre esguias e belas. Cavalos e amazonas confundem-se. Retratos e auto-retratos ironizam. Siza desenha, como ninguém. Monstros de formas por vezes obscenas, lembram os amigos-inimigos, que, pela beleza monstruosa do desenho, são perdoados.

Numa raiva de desenhar e copiar os mestres.

Às vezes dá raiva só de ver. Não pela inveja de não fazer, mas pela inveja da persistência, do uso de cada momento, de qualquer momento, para exercitar, melhorar, pesquisar, descobrir. O desenho em Siza é uma prova de insatisfação e inconformismo.

Lápis sobre papel 297x210mm

Às vezes dá raiva de não ter.

Não pela inveja de não ter, mas pela inebriante beleza daquele pequeno desenho de três segundos que sintetizou a forma o conteúdo, um pensamento, uma vida.
Críticos, muitos dos tais amigos-inimigos, dirão que estes desenhos não serão a face mais importante da obra do Álvaro Siza, do Arquitecto, aclamado, recusado e incómodo.
Outros farão comparações com os grandes, num exercício de demonstração pluricultural desnecessária, mas por si só interessante, pela comparação, desnecessária e descabida, mas evidente.
Têm-no feito também a respeito de outras actividades, vontades e prazeres que o Álvaro Siza tem exercitado, por desejo, por capacidade.
Que importa?

A nós, a sua presença em casa ou em viagem, é-nos infinitamente querida. Esses momentos, quase religiosos, em que desenha, transmitem-nos a serenidade e o prazer do desenho.
Um hábito que se perde pouco a pouco e que será, é, privilégio de poucos.

Haveria muitos mais desenhos que outros tantos amigos têm e que certamente estariam disponíveis para expor. Mas as exposições têm as suas limitações. Um obrigado a todos.
Outras oportunidades haverá para expor estas preciosidades espontâneas de Álvaro Siza. Não faltaram outras noites. E muitas delas ao jantar. E amigos à volta.

Gaia, 4 de Novembro de 2009

Lápis sobre papel 297x210mm

EXPOSIÇÃO . ÁLVARO SIZA – ESQUISSOS AO JANTAR
A maior parte dos meus desenhos obedece a um fim preciso: encontrar a Forma que responda à Função e da função se liberte – e do esforço – abrindo-se a imprevisível destino.
Simultaneamente ou não, “ao lado”, surge outro desenho.
Desenho de prazer, de ausência, de repouso, cruza-se com o outro, pois de nada nos alheamos por inteiro.
Um ou outro podem surgir na mesma folha de papel, aparentemente estranhos, voluntária ou involuntariamente relacionados.
Pode um retrato minucioso ou um risco ao acaso iluminar no instante a paciente pesquisa, percorrendo os corredores da memória, sem que haja apelo ou consciência disso.
Desenho é projecto, desejo, libertação, registo e forma de comunicar, dúvida e descoberta, reflexo e criação, gesto contido e utopia.
Desenho é inconsciente pesquisa e é ciência, revelação do que não se revela ao autor, nem ele revela, do que se explica noutro tempo.
Liberto, o outro desenho conduz ao desenho consciente.

Novembro de 2001

Álvaro Siza

A CASA DA ARQUITECTURA tem disponível para venda o livro/catálogo da exposição no Lugar do Desenho/Fundação Júlio Resende em Valbom, Gondomar.

O título Álvaro Siza – Esquissos ao Jantar é também o título da exposição. Mostra uma selecção de desenhos, ou esquissos, que o Arquitecto Álvaro Siza tem realizado ao longo de alguns anos, tranquilamente, em casa de amigos, em restaurantes, mostrando uma outra versão das capacidades e versatilidades deste grande artista.

http://casadaarquitectura.pt/node/72