The architecture of photography by Manuel Graça Dias
A ARQUITECTURA DA FOTOGRAFIA
Teve que passar bastante tempo, depois de 1839 e dos primeiros daguerreotipos que reproduziam “quadros” postos à frente do fotógrafo (para alegria e espanto sobretudo daqueles que sempre tinham, secreta e miticamente, ambicionado poder um dia ficar fixados numa tela através do “génio” de um artista pintor), para que a fotografia ganhasse um estatuto próprio, como se sabe.
Se para a pintura foi fundamental essa data — para se poder começar a desvincular da obrigação de “reproduzir” o real, para se poder dedicar ao que sempre verdadeiramente lhe interessara (o recorte, os contrastes, a luz, a sombra, o despertar da cor ou o seu súbito desvanecimento, tomando como base troços visualizados do mundo real, mas também outras imagens: inventadas, sonhadas, derivadas ou irreconhecíveis) –, para a própria fotografia terá parecido muito pouco provável a saída imediata desse inicial universo de figuração e de composição em espelho, a devolver, simbólico, a quem se desejava ver retratado.
No entanto, ganha a “objectividade” da devolução da imagem, sobrava ainda o subjectivo “olhar” aberto através do quadrado onde batia a luz, nas costas do fole das câmaras fotográficas. O sublime da arte foi descoberto quando se compreendeu o encanto de re-olhar o que já conhecíamos, deixando “em fundo” garantido o “documento” e trazendo “para a frente”, a espécie de renovação rectangular que, simultaneamente, o isolava do mundo e do contexto.
[As “câmaras mentem tanto”, diz-nos Bill Watterson através da boca de Calvin (“Calvin & Hobbes”, Público, 15 de Outubro de 2002)].
A fotografia “documental” passou a existir (daí o seu encanto) neste estreito esmagamento temporal, entre a felicidade do acontecimento, do ambiente ou da acção a reproduzir e o vislumbrado novo modo de os “enquadrar” (com a assistência da “técnica”, que permitirá a melhor abertura face à luz, o melhor “foco”, a melhor profundidade de campo).
A “Fotografia de Arquitectura” inserindo-se nesta categoria, obrigará, ainda, suplementarmente, a um enorme rigor em qualquer dos níveis considerados.
Exigir-se-lhe-á, primeiro, que nos devolva a compreensão do espaço retratado. Tarefa impossível, porquanto o espaço e as suas múltiplas dimensões não se deixam “prender” na bidimensionalidade da convergência perspéctica da reprodução fotográfica; mas uma “aproximação”, uma “aproximação” que nos acorde as memórias de outras experiências e que nos sugestione o tipo de espaço, as preocupações do autor, o que sentiu o fotógrafo que o habitou antes de no-lo tentar devolver e à pesada leveza do que o envolve.
Quanto tempo (dias) aguardará pelo sol? Aquele sol — daquele dia — as sombras que provoca? Não para “falsear” na revelação a sua estadia, mas porque sentiu caracterizador (e então uma boa hipótese de sugestão), aquela particular sombra de um dia de Verão.
Depois o olhar, o tal quadrado ou quadro que é o interior do enquadramento: como vai o fotógrafo de arquitectura “enquadrar”? O que omitirá? De que cuidados e éticas se rodeará, com a caixa aberta perscrutando o construído? Procurando o real? Revendo o real?
Só depois a “técnica”, mediando ambas, pedida por ambas. E representar a Arquitectura irá exigir a ilusão de eliminar a distorção perspéctica, encontrando o non troppo herdado da composição renascentista, regressando à alvenaria plasmada em plano que o nosso olhar, educado por séculos de imagens, aprendeu a admitir. Entram as lentes ajustadas e as baterias de máquinas aqui; por vezes, ainda um pouco de photoshop, para anular um prematuro grafitti, uma mancha quase mínima ou uma sombra que só a cuidadosa observação posterior da imagem revelou.
Mostrar a arquitectura. Todos os arquitectos se julgam fotógrafos. Vítor Figueiredo especulava sobre o tema.
O que levará os arquitectos a sentirem-se tão à vontade por aí, sabendo nós que só de alguns — poucos –, nos interessarão as fotografias?
Os arquitectos emocionam-se com a arquitectura: com a do passado, com a moderna, com a qualidade e com a originalidade do espaço, com o acerto geométrico do espaço que o espaço parecerá conter. E querem guardar essas emoções. Querem (imaginam querer), mais tarde, poder olhar o pedaço de real, recompondo mentalmente esse real. Querem copiar, transportar aquela emoção, refundi-la, eventualmente, noutros contextos, também reais.
Muitos tropeçarão, por isso, na armadilha da “objectividade”. Outros divagarão sobre o olhar, propondo-nos outros olhares. A poucos sobrará a necessária paciência para, emocionados, aguardarem o acordar da manhã, o primeiro raio de sol ou então o último, a sombra longa estendida, o brilho no cerâmico, a passagem dos bandos de pássaros à hora da algazarra.
Na sua actividade solitária, privilegiarão os corredores vazios para melhor poderem, e mais à vontade, experimentar, testar, inventar o olhar.
Só quando virem passar ao longe fugaz um aluno, numa escola em férias, compreenderão então, quanto aquele vulto, subitamente, é de tal modo definitivo para a compreensão da dimensão do corredor, para o corte da luz que “rebenta” o fundo, para a inscrição da escala, face à altura do todo.
Mas a lenta artilharia técnica não se compadece com a frescura da reportagem que o arquitecto desejaria atenta, acordada e “plástica” face aos acontecimentos.
Ali, onde os acontecimentos seriam o espaço parado existente, mexido pela solene passagem do sol, no enfiado preciso com a porta-corredor-tubo, é o arquitecto-fotógrafo que, depois de tudo ajustar, emprestará ainda o seu corpo à imagem do espaço que anteviu, na ausência desse aluno que só verá do espaço a imagem mais tarde.
THE ARCHITECTURE OF PHOTOGRAPHY
As is known, it took quite a long time before photography gained its own independent status following 1839 and the first daguerreotypes reproducing “portraits” in front of the photographer (to the delight and surprise of especially those who had, secretly and mythically, always wished to be permanently captured on canvas through the painter’s “genius”).
If this date was fundamental for painting — in order to begin to free itself from the obligation of “reproducing” reality and to focus on what had always been of true interest (contour, contrasts, light, shadow, bursts of colour or its sudden vanishing, taking as a starting point glimpses of the real world, but also of other images: invented, dreamt, derived or unrecognisable) –, for the photograph itself, an immediate escape from this initially mirrored compositional universe was very unlikely, as it constituted a symbolic return to whomever desired a portrait of themselves.
Nevertheless, with the image’s new-found “objectivity”, a subjective “view” remained, opened by the square where the light shone on the back of the camera’s bellows. The art’s sublime nature was discovered through a marvelled re-examination of what we were already familiar with, leaving the “document” in the “background” and bringing to the “foreground” a kind of rectangular renovation that simultaneously isolated it from the world and its context.
The “documental” photograph has come to exist within this narrow, temporal crush (therein its charm), between reproducing the joy of an environment, event or action and the transient, novel method for “capturing” it (with “technical” assistance, allowing for greater aperture, “focus”, and depth of field).
As part of this category, the “Photography of Architecture” would eventually demand enormous, albeit supplementary, rigour at any one of the levels considered.
First of all, it would require that it return our understanding of the depicted space to us: an impossible task seeing that the space and its multiple dimensions do not lend themselves to being “captured” by the two-dimensional, perspectival convergence of photographic reproduction; it is rather an “approximation”, an “approximation” evoking memories of other experiences and which is suggestive of the type of space, the author’s concerns, of what the photographer who inhabited the space felt before attempting to return it to us, and the heavy lightness surrounding it.
How long (days) will he wait for the sun? That sun — on that day — the provocative shadows? Not in order to “distort” his sojourn during development, but because he felt that particular shadow on a summer’s day to be characteristic (and thus a good suggestive possibility).
Following the view, thesaid square in the interior of the frame: how is the architectural photographer going to “frame” it? What will he omit? What precautions and ethics will he surround himself with, the open shutter scrutinising the structure. Searching for what is real? Re-examining what is real?
Only afterwards comes the “technique”, mediating both and required by both. Depicting architecture would come to require the illusion of eliminating perspectival distortion, finding the non troppo inherited from Renaissance composition, returning to the flat moulded masonry that our eye, educated by centuries of images, has learnt to allow for. Adjusted lenses and batteries enter here; sometimes even a bit of photoshop to delete untimely graffiti, an almost minimal spot or a shadow that only a subsequent careful observation of the image has revealed.
Show architecture. All architects see themselves as photographers. Vítor Figueiredo speculated on the subject.
What leads architects to feel so at ease in this field, knowing that the photographs will only interest a few?
Architects are excited by architecture: both from the past as well as modern, by the quality and originality of the space, with the geometric reason it seems to contain. They want to preserve this excitement. They want (imagine they want) to be able to look at a piece of reality later, mentally recomposing this reality. They want to copy and transport that excitement, reshaping it, possibly, for other, real contexts.
Many will therefore fall into the trap of “objectivity”. Others will skirt around the view, proposing new ones. A few will remain with the necessary patience to excitedly preserve the dawn, the first or last of the sun’s rays, the long, extended shadow, its glimmer on the ceramics, the passing of flocks of birds during the hour of din.
In their solitary activity, they will favour the empty corridors to be better able to (and more at ease to) experiment, test, and invent their “view”.
Only in the fleeting distance, when they catch a student in a school closed for the holidays, will they then understand how much that figure is suddenly so definitive for understanding the corridor’s dimensions, the sliver of light that splinters the background, the scale’s inscription, faced with the height of the whole.