Uzina books com fotografia de Fernando Guerra
BELÉM LIMA
12 Regards
Ana Vaz Milheiro
Bernardo Pinto de Almeida
Emídio Agra
Fernando Guerra
João Miguel Fernandes Jorge
José Luís Gordo Porfírio
Jorge Figueira
Maria Filomena Molder
Rui Chafes
Susana Camanho
Rui Chafes
Habitar uma Sombra
Para chegares a uma casa, tens de caminhar. Tens de procurá-la. Uma casa não existe. Uma casa não vem ter contigo, à tua procura. Nenhuma casa te espera, a menos que aceites que aquilo que te espera possa ser uma casa. Tens de procurá-la, tens de construi-la, mesmo que pareça já estar construída. Procuramos uma casa, nem sempre sabemos onde ela se poderá encontrar.
Uma casa de granito, ou de calcário, ou de madeira, ou de betão, ou de pano, ou de adobe, ou de terra misturada com canas, ou de ferro, ou de papel. Um cobertor, ou apenas a arcada de um prédio na noite desta cidade. Ou os lençóis de uma cama, ou um quarto de hospital, ou as quatro paredes de um asilo ou de uma cela de prisão. Lugares onde a espessura do tempo perde todo o significado.
Uma gruta onde alguém esperará por alguém até que a última vela se extinga e tudo mergulhe na escuridão, para sempre. Um pequeno apartamento perdido entre tantos outros, ou um palácio escondido por detrás das árvores. Enormes janelas sobre a paisagem, uma distância que nos defende do mundo através do mais preciso enquadramento da sua beleza. Uma casa negra, uma sombra. Uma casa que não quer aparecer, que está e não está, que existe e não existe neste lugar, erguendo a sua sombra entre a brancura de todas as que a rodeiam. Ou as paredes de betão, viradas para dentro, que nos isolam do resto da cidade. Uma sucessão de longos muros coloridos onde os ramos das árvores se duplicam, silenciosamente, em forma de sombra. Um sofá no canto do quarto, a estante com todos os livros que contêm o nosso mundo. Um compartimento de comboio. Um quarto de hotel, frio, daqueles baratos, perto da estação, que os ladrões preferem, para poderem mais facilmente fugir.
BELÉM LIMA
12 Regards
Ana Vaz Milheiro
Bernardo Pinto de Almeida
Emídio Agra
Fernando Guerra
João Miguel Fernandes Jorge
José Luís Gordo Porfírio
Jorge Figueira
Maria Filomena Molder
Rui Chafes
Susana Camanho
Rui Chafes
Inhabiting a shadow
To get to a house you have to walk. You have to find it. A house does not exist. A house won’t come to meet you, it won’t come looking for you. No house expects you unless you accept that what is expecting you may be a house. You must find it, build it, even it already seems to be built. We look for a house without ever quite knowing where we might find it.
A house of granite or limestone, wood, concrete or cloth, adobe or earth mixed with cane, made of iron or paper. A blanket or just the arch of a building in the night of the city. Or the sheets of a bed, or a hospital room, or the four walls of an old people’s home or a prison cell. Places where the thickness of time losses all meaning.
A grotto where someone will wait for someone until the last candle burns down and all is plunged in darkness forever. A small apartment lost among so many others, or a palace hidden among the trees. Enormous windows over the landscape, a distance that protects us from the world by the most exacting framework of its beauty. A black house, a shadow. A house that does not want to appear, that is there but isn’t, that exists but does not exist in this place, raising its shadow between the whiteness of all the others surrounding it. Or concrete walls facing inwards, cutting us off from the rest of the city. A succession of long coloured walls where the branches of the trees silently duplicate themselves in the shape of a shadow. A sofa in the corner of the room, the bookshelf with all the books that contain our world. A train compartment. A hotel room, cold and cheap, near the station, the sort thieves prefer so they can more easily escape.
Uma cama para o nosso cansaço. Um objecto amado que conservamos no calor da nossa mão. Uma carta que recebemos e que mantemos guardada. Ou o armário com todos os objectos que recolhemos nas nossas viagens. Uma casa pode ser uma praia, uma onda, uma rocha.
Uma casa é uma fogueira, ou é um copo de leite quente, ou um copo de vinho, ou um copo de água. Uma casa solitária, rodeada de miragens. Uma casa abandonada, que nos abriga da chuva.
Uma casa é um jardim, uma árvore com raízes ou a sua sombra, apenas. Uma casa de adobe no vazio do deserto, uma tenda na estepe ou na hammada, o longo tempo que passamos escutando o sangue a percorrer as veias do nosso corpo. O velho nómada que vive numa tenda, no pátio da casa do seu filho, porque sabe que morrerá no dia em que tiver um telhado sobre a sua cabeça em vez do luminoso silêncio das estrelas.
Nós somos as casas, os países, as fronteiras. A nossa casa são as dunas do deserto onde, se algum dia morrermos, as nossas cinzas serão espalhadas e assim ficaremos para sempre juntos, levados pelo vento, pairando no nosso mais amado lugar do mundo, misturados com a areia, ora escaldante, ora gelada. A nossa casa é a nossa viagem, eterna e sem retorno, para além da última fronteira. Nunca mais nos custará subir as dunas, se fizermos parte delas. A minha casa és tu. Se viveres no sítio onde nasceste, estás sempre a perder, diariamente: nada
conseguirá curar as feridas da memória. Se emigraste para longe das tuas raízes, não perdes nada, tudo é novo para o teu coração. Tens tudo, menos o reconhecimento permanente e sempre espantoso dos espaços que já habitaste em criança, e que continuas a habitar.
Reconhecer… é essa a palavra mais pesada de todas, quando falas da “casa”. Falas de memória, de regressar às origens, do primitivo instinto do regresso. Uma menina com um ano, sentada na cadeira do fotógrafo, olha-nos lá de longe, na imensidão do tempo, com os seus olhos transparentes, a preto e branco; hoje tem quase 90 anos e a casa de granito onde nasceu persegue os seus sonhos e oferece-se, em vão, à sua corrida apressada e alegre pelas varandas e escadas. O cheiro das madeiras, o toque das maçanetas das portas na palma das nossas mãos, é disso que nos fala a muda arte dos construtores, dos arquitectos. Uma construção precisa, que fala apenas a sua própria linguagem, a sua própria essência específica.
A que local queremos sempre regressar? O teu desejo absoluto é ter uma casa que nunca mude, num local que nunca se modifique, sempre o mesmo. Mas, como sabes, isso é uma utopia, uma impossibilidade: nada mantém a sua forma. Nada. Tudo muda em permanência, até esta estrada em que atravessamos a paisagem, que hoje é assim e amanhã será de outro modo.
A bed for our tiredness. A beloved object we hold in the warmth of our hand. A letter we receive and keep. Or the cupboard with all the objects collected on our travels. A house can be a beach, a wave, a rock.
A house is a bonfire or a glass of warm milk, a glass of wine or a glass of water. A solitary house surrounded by mirages. An abandoned house where we shelter from the rain.
A house is a garden, a tree with roots or merely its shadow. An adobe house in the empty desert, a tent on the steppes or in the hammada, the long time we spend listening to the blood flowing in the veins of our body. The old nomad who lives in a tent in the courtyard of his
son’s house because he knows that one day he will die when instead of the shining silence of the stars he has a roof over his head.
We are the houses, the countries, the frontiers. Our house is the dunes of the desert where if one day we die our ashes will be scattered and so we will be together always, blown by the wind, hovering over our most beloved place on earth, mingling with the scalding or freezing sand. Our house is our journey, eternal and without return, beyond the last frontier. It will never be hard for us to climb the dunes if we are part of them. My house is you. If you live in the place where you were born you are losing every day: nothing can cure the wounds of memory. If you emigrated far from your roots you lose nothing, all is new to your heart. You have everything except the permanent and onstantly amazing recollection of the spaces you lived in as a child and in which you continue to live.
Recollection… that is the heaviest word of all when you speak of “home”. You speak from memory of going home, of the primitive instinct of return. A one-year old girl sits on the photographer’s chair and watches us from afar, in the immensity of time, with her transparent eyes, in black and white; today she is almost 90 and the granite house where she was born chases her dreams and in vain offers itself up to her quick and happy prancing on the verandas and stairs. The smell of wood, the touch of the doorknobs on the palm of our hands,
that is what the dumb art of builders and architects speaks of. A precise construction, which only mentions its language, its own specific essence.
To which place do we always wish to return? Your absolute desire is to have a house that never changes in a place that never alters, always the same. As you know, however, that is an illusion, it is impossible: nothing retains its shape. Nothing. Everything is constantly changing, even this road on which we cross the landscape, today is thus and tomorrow will be different.
As cidades mudam e os campos desaparecem, quando não lhes prestamos atenção. Tudo está em constante transformação, tudo aparece de forma minúscula e vai crescendo até se tornar gigantesco e desaparecer depois, para sempre. É esta a história do nosso desamparo. Quereres uma coisa que não mude é a utopia de quereres o que te proteja da própria mudança. Mas isso é medo disfarçado de força. Sofres porque perdeste tudo, todos os locais da tua memória, a casa da memória. Já não tens aonde regressar, um lugar que esteja sempre igual e imutável, de cada vez que lá voltas. Dizes que tens a absoluta necessidade de voltar para o sítio onde vieste a este mundo, onde foste uma criança feliz. Mas a idade não existe, apenas o desejo de parar o tempo, de o inverter, de ser de novo a criança que corria na varanda. Ou de tornar a ver o imenso pôr-do-sol que nos acompanha até adormecermos na nossa cama de férias. Sofremos por não sabermos a onde pertencemos, ou por não pertencermos a lugar nenhum. Se não conseguimos parar o tempo nem invertê-lo, só nos resta fugir dele. Onde o nosso olhar pousa, começa um mundo novo. Ter a capacidade de olhar para uma coisa pela primeira vez. O primeiro olhar. Tentamos reproduzir a pureza desse primeiro olhar nas coisas que fazemos para os outros. Mas os cheiros, as sombras das folhas nas paredes dos jardins, a frescura estonteante das madrugadas em silêncio nos campos acabados de sair da noite… nada disso volta, está perdido para sempre. Permanece apenas a casa, a construção, o trabalho dos arquitectos, dos construtores, dos pedreiros, dos carpinteiros. Mas, por vezes, tens medo de já não caberes nessa tua casa. Ou de teres deixado de lhe pertencer.
Uma casa são as palavras com que me descreves emocionadamente, e com toda a precisão, uma capela em forma de lágrima, formada pelos espaços vazios dos troncos que arderam totalmente. Talvez sejas tu a madeira que ardeu, deixando apenas o negro rasto de uma ausência.
Uma casa é uma visão: aquela enorme montanha que acompanha a minha vida desde criança. Aquela montanha. Uma casa é o riso e as vozes das crianças que a habitam. Uma casa é onde o sorriso antigo dos nossos Pais permanece sempre à nossa espera, de cada vez que chegamos. Uma casa é uma gargalhada, ou as vozes e o sorriso dos amigos. Procuramos uma casa que exista em todo o lado, sem tectos nem paredes. Nem alicerces. Nem portas fechadas. Uma casa é um abraço: o maravilhoso aroma da pessoa amada, a sua acolhedora temperatura, a comovente suavidade e doçura dos seus contornos, a sua pele, a sua voz, o seu olhar que nos envolve. O seu sorriso, que sempre reconheceremos. A sua mão no interior da nossa mão quando passeamos os dois. Esta é a casa mais eterna e a mais precária, a única que esperará sempre por nós. Nenhuma casa vem ter contigo. Para chegares a uma casa tens de caminhar, tens de a procurar. Podes conseguir encontrá-la, no tempo da tua vida. Ou não.
Rui Chafes
Lisboa, Julho 2010
Cities change and fields disappear when we pay them no attention. All is in permanent transformation, all appears in minuscule form and grows until it become gigantic, disappearing again forever. That is the story of our forlornness. Wanting something that does not change is the illusion of wanting what will protect you from change itself. That is fear disguised as strength. You suffer because you lost everything, all the places in your memory, the home of your memory. You no longer have somewhere to go back to, a place that is always the same, immutable, every time you return.
You say that it is absolutely vital that you return to the place where you were born, where you were a happy child. But age does not exist, only the desire to stop time, to turn back time, once again to be the child who ran on the veranda. Or once again to see the huge sunset that keeps us company until we fall asleep in our holiday bed. We suffer not knowing where we belong or for not belonging anywhere. If we cannot stop or turn back time, we can only run away from it.
A new world begins where our eyes rest. To be able to look at something for the first time. The first look. We try to reproduce the purity of that first look in the things we do for others. But the smells, the shadows of the leaves on the garden walls, the heavy freshness of the silent dawns in fields newly emerged from the night…none of that comes back, it is lost forever.
All that remains is the house, the construction, the work of architects, builders, stonemasons, carpenters. Sometimes, you are afraid that you will no longer fit inside your house. Or that you no longer belong to it.
A house is the words you used passionately and accurately to describe to me a chapel shaped like a tear, formed by the empty spaces of tree trunks that had burned to the ground. Maybe you are the wood that burned, leaving only the black streak of absence.
A house is a vision: that enormous mountain that accompanies my life since childhood. That mountain. A house is the laughter and the sound of the voices of the children who live there. A house is where that old smile of our parents is always waiting for us each time we arrive. A house is laughter, or voices and the smile of friends. We look for a house that exists everywhere, with neither ceiling nor walls. Nor foundations. No closed doors, even. A house is an embrace: the wonderful smell of your loved one, the welcoming warmth, the moving softness and the sweetness of their shape, their skin, their voice, their look that embraces us. That smile that we will always recognise. Their hand in our hand when we walk together. That
is the most eternal and the most precarious house, the only one that will always be waiting for us. No house will come to meet you. To reach a house you have to walk, you have to look for it. You can find it during your lifetime. Or not.
Rui Chafes
Lisboa, July 2010
Título
Belém Lima 12 Regards
Editor
José Manuel das Neves
Direcção de Arte
Gustavo Suarez
Design Gráfico
Pedro Cores
Coordenação editorial
Virgínia Palma
Coordenação Escritório
Ana Coutinho, Cláudia Lopes, Luísa Marques, Duarte Silva (Arquitectos)
Eduarda Freitas (Jornalista)
Retroversão Técnica
Incubadora-ID – Fernando Torres e Ana Torres
Retroversão
Alexandra Leitão
Revisão
Sérgio Simões
Paginação e Arte Final
Susana Monteiro
Foto Capa
Fernando Guerra – FG+SG Fotografia de Arquitectura
Pré-impressão
Uzina
ISBN
978-989-8456-00-7
Depósito Legal
318 522 / 10
Data de edição
Fevereiro 2011
Edição
Uzina Books
Title
Belém Lima 12 Regards
Editor
José Manuel das Neves
Art Director
Gustavo Suarez
Graphic Design
Pedro Cores
Editorial Coordination
Virgínia Palma
Office Coordination
Ana Coutinho, Cláudia Lopes, Luísa Marques, Duarte Silva (Arquitects)
Eduarda Freitas (Journalist)
Technical Retroversion
Incubadora-ID – Fernando Torres e Ana Torres
Retroversion
Alexandra Leitão
Revision
Sérgio Simões
Pagination and Art work
Susana Monteiro
Cover Photo
Fernando Guerra – FG+SG Arquitectural Photography
Pre-printing
Uzina
ISBN
978-989-8456-00-7
Legal deposit
318 522 / 10
Publishing date
Fevereiro 2011
Edition
Uzina Books